Nebraska e os dilemas familiares vistos na estrada

Road movies familiares, em boa parte dos casos, revelam-se experiências adoráveis e enriquecedoras, seja pela oportunidade de olhar outro grupo de pessoas unidas por laços de sangue e constatar que alguns problemas se repetem, seja para encontrar dissonâncias entre a família que se vê na tela e a família que se tem em casa e harmonizar as que são positivas. Nebraska (idem, 2013), novo filme de Alexander Payne, é mais uma dessas belas oportunidades que o Cinema acaba de oferecer. O diretor, celebrado por títulos como As confissões de Schimidt (About Schimidt, 2002) e Sideways - Entre umas e outras (Sideways, 2004), aborda o que tem se mostrado sua temática favorita pela terceira vez consecutiva - nessa sequência, ainda se encontra Os descendentes (The descendants, 2011). 

Dessa vez, a história já começa em plena estrada, quando Woody Grant (Bruce Dern) caminha com dificuldade em direção ao estado que nomeia o filme, distante mais de 1300 km de onde ele habita. Rapidamente, ele é abordado por um policial que constata seu estado mental débil e contata um de seus filhos, o pacato David (Will Forte), que vai ao seu encontro e o conduz de volta para casa. Uma vez de volta ao lar, a razão daquela "escapada" se clarifica: Woody recebeu uma mala direta que lhe faz ganhador de uma quantia de 1 milhão de dólares. Entretanto, há duas condições básicas: só ganha o dinheiro quem for sorteado e escolher algumas das publicações da editora que enviou a correspondência. Ambos os detalhes são ignorados por Woody, que enfiou na cabeça que está milionário e tem de ir buscar seu prêmio.

Então, David toma a decisão de levar seu pai de carro até o local do prêmio, a despeito de saber que se trata de um dos golpes de marketing mais largamente empregados do mundo e depois de ter percebido que era inútil convencê-lo dessa verdade. A longa viagem acaba sendo uma ocasião para os dois conviverem um pouco mais, e ocorre uma nítida inversão de papéis entre eles. Devido à saúde um tanto comprometida pelos vários anos de alcoolismo, Woody demora a processar os fatos e pessoas ao seu redor, o que o torna dependente de uma postura paternal de David, sempre muito paciente e discreto em suas emoções, salvo por alguns rompantes durante algumas das conversas com o genitor. Os dois caem na estrada sobre os protestos de Kate (June Squibb), a matriarca, que diz não aguentar mais a teimosia do marido e acredita que David enlouqueceu junto com ele por ter embarcado em sua cisma.

Seja como for, o pretexto foi aproveitado e, uma vez inseridos nesse percurso, os dois vivem uma série de situações que se equilibram na linha tênue entre o sorriso e a comoção, entre a gargalhada e o grito preso na garganta, extremos típicos de momentos em que a descarga emocional e o filtro afetivos são acessados e despertados. Payne investe em uma abordagem leve a maior parte do tempo, o que está longe de rimar com superficial ou simplória. A trajetória dessa família, esplendidamente fotografada por Phedon Papamichael em P&B, é altamente passível de identificação, e não faltam carinho no olhar do diretor para seus personagens, verossímeis por seus traços positivos e negativos. O ateniense, a propósito, vem se tornando colaborador fiel do diretor.


Em sua exibição no Festival de Cannes, de onde Dern saiu com o prêmio de melhor ator, Nebraska arrancou elogios da plateia, que se emocionou com seu desempenho minimalista de um homem marcado pelo tempo e pelo vício, mas que conserva um humor sagaz sob a aparência de idoso desamparado. Seu sarcasmo vem à tona nos diálogos com Will, travados nos bares aos quais ele não resiste não entrar. Neles, também surge um pouco do longo passado que carrega nas costas e a sua postura passiva diante da vida. Questionado por Will sobre como ele soube que Kate era a mulher certa, ele diz não ter a menor ideia, e acrescenta que se casou com ela porque foi ela quem quis, mas que não teria tido muito escolha, pois, tendo se casado com outra mulher, viveria debaixo de reclamações da mesma forma. Esses toques amargos fazem Nebraska oscilar entre a comédia e o drama sutil, colocando-o em um patamar superior aos trabalhos pregressos de Payne.

Mas, se muito tem sido comentado sobre a grande atuação de Dern, há que se apontar também para a maravilhosa Kate Squibb, que se transforma em uma ladra de cenas na pele de Kate. Sem quaisquer papas na língua, ela acaba se juntando a Woody e David na viagem, assim como Ross (Bob Odenkirk), o outro filho do casal. E, diante dos demais componentes da família, que todos visitam no caminho para o prêmio falacioso, assim como os vizinhos locais, ela destila seu senso de humor pesado contando várias verdades que Will não imaginava existirem. Seu rosto pouco famoso leva a pensar que se trate de uma estreante tardia, mas seu currículo desmente essa ideia - ela já soma quase quarenta trabalhos como atriz e merece tantos elogios quanto Dern por tudo que faz em cena. Ainda sobra espaço para Rance Howard, quase um sósia de Eric Rohmer, que conquista interpretando o irmão de Woody. O que fica dessa jornada é a certeza de que os laços familiares são indispensáveis: é a eles que sempre voltamos no fim das contas. E Nebraska, desde já, é um candidato a permanecer lembrado por muitos anos.

9/10

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