Ratatouille, um adorável conto sobre o refinamento


Nos últimos anos, a Disney/Pixar vem oferecendo ao seu público uma série de filmes com um aspecto muito mais amplo do que o do simples entretenimento. Um exemplo recente dessa nova leva é Ratatouille (idem, 2007), uma animação graciosa produzida pelos estúdios que um dia já entregaram desenhos clássicos como A bela e a fera (The beauty and the beast, 1991). O filme é uma ode à busca pelo prazer nas pequenas coisas, e propõe um interessante jogo associativo entre a figura inicialmente repulsiva de um rato – o protagonista Remy – e o seu apreço por uma boa refeição. Expressando-se em termos reducionistas, o trabalho do diretor Brad Bird – o mesmo de Os incríveis (The incredibles, 2004) – leva a concluir: por que se contentar com besteiras quando se pode ter algo da melhor qualidade. Essa linha de raciocínio se estende para o melhor amigo do animalzinho, o atrapalhado Linguini.
Ratatouille começa com a apresentação de Remy e sua personalidade sonhadora e otimista. Ele cresceu nos becos do submundo parisiense, mas nunca se sentiu verdadeiramente uma parte integrante daquele ambiente lúgubre. Daí vem sua paixão pela gastronomia, que ele alimentou – com o perdão do trocadilho – ao longo dos anos, assistindo ao programa de TV apresentado por Gusteau, um famosíssimo chef de cozinha que desencadeou boa parte do traquejo do rato para a preparação de finas iguarias. Gusteau acabou morrendo, mas deixou um legado de inspiração muito importante para Remy. É interessante notar o modo como o personagem se sente deslocado em sua família, que está habituada e condicionada a ter e a comer somente o que está diante de seus olhos, enquanto ele se permite abrir para novos prazeres, não se conformando com o fácil e o simples. Eis outra metáfora muito apropriada de que Bird faz uso através do simpático ratinho, que apresenta muitos traços humanos que o tornam bastante palatável ao público, ainda que continue sendo um rato.
Remy acaba travando amizade com um travado rapaz que atende pelo nome de Linguini, o arquétipo do aparvalhamento. O jovem deseja obter um emprego em um famoso restaurante de Paris, mas sua garra para lutar pelo posto é inversamente proporcional ao seu talento na cozinha. Daí surge a aliança proveitosa para ambas as partes: Remy ensina Linguini a preparar os pratos servidos no restaurante, para que ele possa ficar com o emprego e, de quebra, realiza-se com sua vocação culinária. Por meio dessa amizade, Ratatouille reforça a afetividade que pode pairar nos corações das pessoas, e aposta no improvável como um acontecimento de plena utilidade prática. Nessa relação simbiótica, eles vão pavimentando o caminho para a tentativa de solução de seus problemas, e conquistando o espectador mais afeito a fábulas sobre a natureza humana.
O trato feito entre Remy e Linguini faz que o ratinho esteja sempre sob o chapéu de mestre-cuca de seu amigo, o que, evidentemente, gera situações de nítido embaraço. Principalmente quando surge uma pretendente para o jovem, que não sabe como lidar bem com a própria timidez e fica receoso de se aproximar mais daquela bela colega de trabalho. É Remy quem também vai ajudá-lo, sendo a ponte invisível de que Linguini precisa para remover a trava que reside em suas atitudes canhestras. Também nesse ponto, o filme ganha contornos dramáticos que o tiram do rótulo de mera animação. A propósito, Brad Bird rejeita a ideia de que a animação seja um gênero à parte do cinema. Segundo o cineasta, ela pode comportar qualquer gênero cinematográfico dentro de si, sendo predominantemente um drama ou uma comédia, por exemplo. Vez por outra, surgem exemplares de filmes que colocam esses conceitos em discussão. Como não lembrar do caso de Waking life (idem, 2001), longa dirigido por Richard Linklater que, embora tenha o formato de animação, é uma drama pungente e onírico sobre a impossibilidade latente de se entender por completo o sentido da vida?



No caso de Ratatouille, é notável a associação entre o esmero formal e a construção de uma trama consistente, que não se atém apenas ao receituário prescritivo de tantos outros filmes infantis. O longa não se resume a um obra que possa ser assistida para crianças, mas também se configura como um excelente instrumento de reflexão sobre tantos assuntos relevantes. Ao colocar um rato que deseja ser chef de cozinha, Bird lança mão do asqueroso na presença do desejável. Em outras palavras, como diria Victor Hugo, autor de Os miseráveis, há o grotesco e o sublime. Para que o sublime apareça com mais relevo, é necessária sua proximidade com o sublime. Com base nesse artifício, Ratatouille não limita a compreensão da plateia, e solidifica a ideia da relatividade da beleza e da agradabilidade. Remy, por mais que tenha sua condição de rato, é um ser afável e cooperador, só para mencionar duas características suas mais notáveis. Essas suas características acabam por se impor sobre sua aparência física, e tornam-no agradável.
O filme é apenas um exemplar de uma curva de qualidade ascendente traçada pela Disney/Pixar, que começou com Procurando Nemo (Findig Nemo, 2002), prosseguiu com Os incríveis e Carros (Cars, 2005). Depois de Ratatouille, os estúdios ainda nos agraciariam com Wall-E (idem, 2008) e Up – Altas aventuras (Up, 2009). Cada uma dessas animações é dotada de uma humanidade sem tamanho, e fala ao coração com carinho e afetividade. São filmes que nos fazem lembrar que, afora toda a pirotecnia e o apuro visual com as quais um longa-metragem pode contar, é preciso haver bons personagens, longe da planificação que sublima defeitos e deturpa o senso de realidade. Com sua aura de conto moderno e fabulístico sobre o refinamento e o valor do artesanal, Ratatouille alcança facilmente esse feito.

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