Ed Wood e o carinho de um diretor pela bizarrice

Edward Davis Wood Jr. viveu entre os anos de 1924 e 1978. Durante boa parte do seu tempo de vida, dedicou-se a dirigir espetáculos teatrais e, posteriormente, filmes. Seu talento às avessas lhe fez ganhar o título depreciativo de "o pior cineasta do mundo", do qual parecia não se dar conta, já que seguia no ofício que lhe dava tanta satisfação. Até que 16 anos, depois, Tim Burton, outro diretor, levou suas histórias às telas, dando seu nome ao filme. Ed Wood (idem, 1994) é o retrato extremamente afetuoso desse que, para uns, era um tremendo incompetente e, para outros, um gênio incompreendido. Interpretado por um Johnny Depp muito anterior a um certo Jack Sparrow, ele causa empatia quase súbita na plateia pelo que traz de sonhador em sua personalidade. Em sua breve passagem pelo teatro, Ed acumulou fracassos, o que não o tornou abatido, mas despertou seu desejo de arriscar no Cinema. 

Para tal empreendimento, não tinha quase nada a seu favor: os críticos de jornal alardeavam sua falta de capacidade e o público mínimo que se dispunha a assistir aos espetáculos sob a sua direção deixava o teatro insatisfeito. Ainda assim, lançou mão de toda a sua simpatia e entusiasmo para bater na porta dos estúdios da época e oferecer seu trabalho como diretor, roteirista e produtor. Tanto bateu, que furou, ou melhor, abriu uma porta e, tendo um orçamento modesto nas mãos, mesmo para os padrões daquele tempo, começou um percurso de ares quixotescos pela sétima arte. Tratou logo de ir atrás de Bela Lugosi (Martin Landau, magistral), um astro de décadas anteriores que vinha conhecendo o declínio e o semiostracismo. Com uma lábia invejável, convenceu o ator a integrar o elenco de seu primeiro projeto, depois de tê-lo encontrado saindo de uma funerária. Inicialmente cético, Lugosi se deixou conquistar pelos elogios inflamados de Wood, e emprestou seu brilho então levemente ofuscado para dar início à carreira atrás das câmeras daquele que viria a se transformar em um bom amigo.

Aos poucos, outras figuras curiosas vão ganhando espaço na tela, e Ed Wood se mostra como uma declaração de amor aos que dão o seu sangue pelo Cinema e, mesmo sem desfrutar do prestígio da crítica e do público, seguem adiante em seu ofício. As pedradas que recebia não faziam Wood desistir: pelo contrário, ele tinha convicção de ser talentoso e não entendia como alguém poderia não gostar de seus filmes, sempre de gosto duvidoso. Entre suas obras mais famosas, estão Glen ou Glenda? (Glen or Glenda?, 1953), um drama sobre um detetive que investiga o suicídio de um travesti, que tem Lugosi na pele de um cientista, e Plano 9 do espaço sideral (Plan 9 from outer space, 1959), uma ficção científica na qual o nono projeto de uma raça alienígena consiste em ressuscitar os mortos - nesse, Lugosi interpreta um vampiro. De tão ruins, esses e outros filmes se tornaram clássicos cults e hoje são perseguidos pelos interessados em um cinema underground, das sessões clandestinas e sem qualquer compromisso com fórmulas hollywoodianas. 


Na voz, no corpo e nos gestos de Depp, o realizador é mais do que um tipo risível: em sua conduta aparvalhada, gera comoção e torcida. Mesmo que sua falta de talento seja notável, parece impossível não desejar que ele alcance o sucesso e melhore a qualidade do seu trabalho, ainda que a história real nos mostre que isso acabou não ocorrendo. A cinebiografia foi a segunda colaboração entre Depp e Burton, que havia começado quatro anos antes com o emocionante Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990), e um projeto mais pessoal do diretor, fascinado por personagens excêntricos e que achou na realidade a matéria-prima ideal para mais uma de suas produções. E, se hoje Depp vive um momento delicado de sua carreira, com escolhas equivocadas e atuações no piloto automático, neste filme, ele oferece um belo desempenho e contribui decisivamente para humanizar a figura de Wood, antes de tudo, um sonhador. Um detalhe curioso é que a inspiração para Burton nomear o protagonista sem mãos normais de seu filme anterior também veio de Wood.

Em vários aspectos, o longa-metragem alude ao biografado, mantendo um ar de produção modesta e se valendo inclusive de uma fotografia em preto e branco, incumbência de Stefan Czapsky, que cumpre a função primária deste recurso técnico: o de tornar cada minuto de história antológico. A trilha sonora também está em ótimas mãos - ninguém menos que Howard Shore, cujo currículo vasto como compositor e maestro fala por si só. No quesito orçamento, porém, Burton dispôs de uma quantia muito mais alta que o somatório dos orçamentos de todos os filmes de Wood juntos, certamente por conta da necessidade de recriar uma toda uma época na qual os acontecimentos se deram originalmente e não para investir em efeitos visuais mirabolantes. Ed Wood também conta com um elenco de coadjuvantes afiados, entre os quais se destacam Sarah Jessica Parker, anos antes de ganhar seu papel em Sex and the city, e Bill Murray, propositalmente afetadíssimo como um dos parceiros profissionais de Wood. O diretor, aliás, tinha o hábito bizarro de se vestir com as roupas da namorada, um segredo que, depois de vir à tona, foi parar em Glen ou Glenda?.

Nesse cruzamento entre esquisitice e gosto duvidoso, Ed Wood tinha tudo para ganhar o público por sua abordagem carinhosa, o toque de Midas de Burton para tornar o filme praticamente irresistível. Entretanto, fracassou grandemente nas bilheterias, com uma arrecadação de 6 milhões de dólares, um terço da quantia despendida para sua filmagem. Quem caiu de amores pela história foi a crítica, junto à qual o filme conta com 92% de aprovação. Hoje, trata-se de um longa-metragem a ser redescoberto e apreciado, bem como uma prova de que o Cinema não tem que se resumir aventuras, balas traçantes, diálogos sarcáticos e piadas escatológicas. Ed Wood vale cada minuto diante da tela e faz da ausência de talento de seu retratado a base para uma narrativa inspirada, que abrange inclusive seus créditos iniciais apresentados em discos voadores, alusivos a Plano 9 do espaço sideral, o fiasco-mor do cineasta. E a linda amizade entre Wood e Lugosi, captada pelo roteiro de Rudolph Gray e Scott Alexander, foi outra grande deixa para Burton realizar o filme, pois, segundo ele, a relação dos dois o fazia lembrar de sua relação com Vincent Price, outro saudoso veterano do terror. Sem dúvida, este foi um dos maiores acertos de sua carreira, ultimamente tão irregular.

9/10

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