O circo: ternura e lirismo em estado puro

O encanto invade as retinas expostas às imagens de O circo (The circus, 1928), mais um exemplar de rara delicadeza oriundo do ímpeto criativo de Charles Chaplin, exímio semeador da cordialidade entre os seres humanos. Nesse simpático longa-metragem, entramos novamente em contato com a figura hilariante do Vagabundo (Chaplin), que vai parar em um circo depois de fugir de um policial que o confundira com um batedor de carteiras, o primeiro dos divertidos incidentes por que passa o protagonista em pouco mais de 1 hora de narrativa. Uma vez tendo buscado refúgio na companhia de artistas itinerantes, ele se encanta pela filha do dono do circo, com a qual desenvolve uma singela amizade que, em seu coração, evolui rapidamente para o amor. Mas que pai admitiria ver sua filha em um relacionamento com alguém tão pobre de recursos como ele?

Por conta disso, assim que o ensaio de enlace entre eles é descoberto, o dono do circo os interdita. Trata-se de um sujeito extremamente austero, que impinge à jovem uma rotina extenuante de ensaios para que ela seja simplesmente a melhor de todos os integrantes daquele grupo. Quando a garota comete um deslize em sua apresentação com a casa lotada, ele é implacável: agride-a verbalmente e a proíbe de se alimentar pelos dias subsequentes, até que ela aprenda a se colocar diante da plateia de modo irrepreensível. Compadecido do sofrimento que lhe foi imposto, o Vagabundo se aproxima e não se importa ao vê-la comendo o alimento que ele obtivera com tanto sacrifício, mas o pai chega antes que ele possa ajudá-la e frustra seus planos de conhecê-la mais a fundo. A opinião daquele homem só muda quando ele se dá conta de que pode lucrar com a ingenuidade do Vagabundo, que arranca risos do público através das suas confusões.

Tudo em O circo é conduzido com muita leveza. O argumento simples é pródigo em oferecer instantes de iluminação cômica e agradar em cheio o espectador que procura por histórias comuns, mas bem contadas. Passados mais de oitenta anos desde o seu lançamento, o filme permanece envolvente e mantém sua aura de candura, contrastando com os tempos cínicos nos quais vivemos hoje. A leitura mais apropriada ao filme na era (pós-?) moderna é a de um resgate de virtudes que parecem encerradas em anos pretéritos, das quais só se ouve falar e cuja prática, para alguns, encontra sinonímia em vocábulos de nível baixo como “otário” e “babaca”. O Vagabundo é o típico sujeito que faz o bem sem olhar a quem, demonstrando a gentileza como parte naturalmente integrante de sua personalidade, e ela abarca, inclusive, pessoas que, em uma linha de raciocínio “olho por olho, dente por dente”, jamais seriam merecedoras de recebê-la, como é o caso do proprietário do circo.


O filme é imediatamente posterior a Em busca do ouro (The gold rush, 1925), um dos grandes êxitos da carreira de Chaplin, pelo qual ele gostaria de ser lembrado. Aliás, era o seu favorito dentre todos que dirigiu em sua extensa e profícua filmografia composta de tantos curtas quantos longas. É também imediatamente anterior a Luzes da cidade (City lights, 1931), talvez o mais celebrado de todos os seus trabalhos como realizador. O circo, portanto, acaba imprensado entre essas duas obras brilhantes e corre o risco de passar despercebido ou de ser deixado em segundo plano por espectadores que privilegiam apenas títulos mais famosos do cinema. Infelizmente, existe essa faixa de público, para os quais estão previstas perdas em matéria de deleite cinematográfico. Afinal, estamos diante de um filme que reúne em si uma fluente mistura de ternura e molecagem, decorrente do talento inigualável de Chaplin para arquitetar situações em que o riso brota com a maior espontaneidade, livre de quaisquer firulas visuais ou piadas prontas servidas em bandejas.

O teor crítico do filme é menor em comparação ao seu trabalho precedente, mas isso não diminui em nada a sua qualidade e está longe de restringi-lo à condição de mero entretenimento. Nas peripécias divertidas encaradas pelo Vagabundo, há sempre algum resíduo de desencanto do próprio Chaplin com a trajetória de um artista que mata um leão por dia para levar sua arte à plateia. Também sobra espaço para uma espécie de denúncia discreta da exploração do mais forte sobre seus empregados, o que se revela uma característica recorrente em alguns dos seus filmes, que a comentam de forma muito apropriada. Felizmente, a obra recebeu o devido reconhecimento da crítica á época de sua concepção, traduzido em um prêmio especial entregue pela Academia. A geração atual só tem a ganhar entrando em contato com a doçura que transborda da produção chapliniana, linda toda vida e plena de amabilidade, tornando-a um genuíno tesouro cinematográfico.

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