Há tanto tempo que te amo ou as amarras metafóricas da consciência

O olhar distante de Juliette (Kristin Scott Thomas) denuncia que existem memórias doloridas que ela deseja esquecer. Livrar-se sobretudo de um episódio trágico era tudo por que ela poderia ansiar, mas a consciência a mantém amarrada, antes de tudo, emocionalmente. Há tanto tempo que te amo (Il y a longtemps que je t’aime, 2008), estreia do romancista Philippe Claudel na direção, inicia-se com esse olhar da protagonista, uma mulher de chagas morais cujo processo de cicatrização parece nunca encontrar seu fim. Ela espera por sua irmã, Léa (Elsa Zylberstein), com quem vai morar depois de ter cumprido pena por um crime horrendo. Os anos longe do convívio familiar a tornaram uma mulher dura e sempre na defensiva, de afeto tão recolhido que parece inexistente. A irmã mais nova é a única que demonstra alguma alegria pelo seu retorno, e se esforça notavelmente para deixá-la confortável naquele ambiente, em que mora com o marido, uma filha adotiva e o sogro.

Aos poucos, Juliette vai se sentindo menos estranha na casa, o que não significa que ela se torne uma pessoa mais feliz ou sorridente. A ferida interior que carrega consigo é forte demais para ser mitigada com um ou outro momento prosaico. Estes são apenas lenitivos de efeito passageiro, que estão longe de combater a raiz do problema. Ainda que sua aparência e seus gestos sejam de uma pessoa intratável, o espectador pode se afeiçoar a Juliette, porque pode ver no seu olhar alguém com quem se identificar em um drama, mesmo que, por boa parte da narrativa, não se tenha a informação sobre qual seja. E os cuidados de Léa, por sua vez, inspiram carinho e admiração, levando a perceber que toda família é uma faca de dois gumes: é fonte de afeto e também de dissensão. Mesmo porque a mãe delas não comunga do entusiasmo de Léa com o retorno de Juliette, preferindo manter-se impassível diante da filha.

O maior trunfo de Há tanto tempo que te amo provém de Scott Thomas. Sua interpretação milimétrica é capaz de dimensionar o público quanto ao pesado jugo sob o qual Juliette se encontra, fazendo a personagem devastadora. Claudel acertou em cheio ao eleger a atriz como protagonista, posto que, nos últimos anos, ela vem ocupando com mais frequência depois de tanto tempo colecionando papéis de coadjuvante. Nascida no Reino Unido, ela exibe uma incrível desenvoltura atuando em francês, levando a pensar que se trata de sua língua materna. E a contenção que a personagem exige é alcançada por ela, fazendo de Juliette uma mulher que vive um misto de resignação com certo impulso de mudança. A aterradora verdade sobre o seu passado vem de forma límpida e inesperada, quando ela vai a uma entrevista de emprego e o dono do escritório lhe pergunta sobre o motivo que a levou a passar tantos anos na cadeia, fato que consta do seu currículo. Diante da insistência do homem em saber a resposta, ela dispara em tom grave o crime que cometeu e o horroriza, ao que se seguem seus gritos para que ela desapareça da sua frente.


É bom que se diga que a condução de Claudel jamais permite que a trama resvale para a manipulação sentimental. O realizador não força o choro do público, preferindo apresentar a personagem e o seu entorno com delicadeza e sinceridade. Ele não está em busca de um grande choque, e essa paradoxal calmaria exasperante torna Há tanto tempo que te amo um filme acima da média, que reafirma a vocação do cinema francês para retratar tragédias particulares não só verborragicamente, mas também através de olhares fugidios e gestos extremamente contidos. Juliette é vítima e culpada ao mesmo tempo, e procura lidar com essa dualidade, comum a qualquer ser humano, tentando se firmar nas pessoas que tem por perto. Isso inclui um envolvimento fortuito com um homem que observa em um café, que a faz se sentir viva outra vez após longos anos em jejum sexual, e a aproximação com outro do qual emana alguma fagulha de esperança de recomeço. Entre esses envolvimentos, surgem cenas de convívio familiar e algumas conversas cotidianas que incluem até mesmo uma citação a Eric Rohmer, cujos filmes são deplorados por boa parte dos personagens e defendido apenas por um, que o considera o Racine do século XX.

O filme se passa na região francesa da Lorena, outrora um dos desencadeadores da Primeira Guerra Mundial. É um local provinciano, de poucas badalações, no qual toda gente é conhecida, o que torna a privacidade um artigo de luxo. Estabelecida ali, Juliette tem a chance de rumar para um futuro menos desalentador, abrindo-se para sorrir mais e novamente expressar carinho e cuidado pelos seus. Essa abertura se reflete principalmente na sobrinha adotiva, com a qual não tinha a menor paciência no começo da história, e a quem acaba ajudando a fazer um bolo. Entretanto, o longa não é moldado pela forma hollywoodiana, na qual finais felizes são praticamente uma obrigação moral dos realizadores e roteiristas. A crueldade da vida se manifesta periodicamente, e lidar com ela é, antes de mais nada, viver. Claudel também é feliz ao deixar lacunas em sua narrativa, adaptação de um dos seus romances. Afinal, como traduzir um sentimento ou um estado de ânimo? O título, aliás, pode semear a crença em um drama romântico, o que está longe ser verdade e se comprova tão logo se entra em contato com sua narrativa. Há tanto tempo que te amo é um filme sobre a dor e sobre o quanto lidar com ela é totalmente individual, por mais cercado de companhias que se esteja.

Comentários

  1. Que bela dica de filme, Patrick. A tensão reinante, a angustia e a dor das relações possuem, aqui, um excelente contexto para a ideia da linguagem em si. Já tomei nota, amigo. Um abraço...

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  2. Veja assim que puder, Maxwell.
    Muito obrigado pela nova visita, rapaz.

    Abraço

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