Prêt-à-porter e as ironias cortantes de um diretor que faz falta


O humor ácido costuma ser uma excelente estratégia para a construção de pareceres críticos a respeito de um determinado momento histórico, uma geração, uma corrente de pensamento ou mesmo um grupo social. Ciente do poder de fogo desse recurso, Robert Altman colecionou retratos audazes de nichos de mercado, por assim, dizer, sobretudo na década de 90, a penúltima de sua produção fílmica. Um dos exemplares dos seus exercícios de argúcia é Prêt-à-porter (idem, 1994), que ostenta um título pleno de empáfia, condizente com o mundo da moda que o diretor se propõe a apresentar. A seu serviço, está um elenco numeroso, que compõe uma vasta galeria de personagens cujas manias e mazelas representam, cada qual a seu modo, aquilo que se verifica normalmente nas revistas especializadas do setor. O significado da expressão francesa, em tradução literal, é “prestes a trazer”; adaptado, usa-se em referência aos próximos lançamentos dos estilistas ou, ainda, diz-se daquilo que está para se tornar tendência em breve.

Então, o espectador é convidado a desembarcar em Paris durante a semana de moda mais importante do calendário francês, que reúne a fina estampa da alta costura. Ao longo de alguns dias, as tramas dos vários personagens vão se entrelaçando, sem que nenhuma seja ou se torne mais importante do que a outra, fazendo do filme um longo passeio pelas neuroses coletivas de indivíduos sempre preocupados em surpreender e em abalar com suas próximas coleções. Sem qualquer verniz, Altman expõe a frivolidade que rege as condutas de empresários, modelos, consultoras de moda e editoras de revistas conceituadas, tornando cada um dos personagens pessoas bastante verossímeis, o que trouxe muita irritação aos profissionais da área na vida real, que se sentiram ultrajados com a forma através da qual foram retratados no filme. Mas há que se pensar que, como se trata de tipos plausíveis, existe um fundo de verdade nas composições dos intérpretes em Prêt-à-porter.

Durante a tal semana de moda, acontece de tudo um pouco. A começar pela investigação da morte de Olivier de la Fontaine (Jean-Pierre Cassel), o presidente da Câmara de Alta Costura, que todos pensam ter sido assassinado friamente, mas que, na verdade, morreu engasgado com um sanduíche. A cena, pitoresca, ocorre quando ele está em um táxi com Sergei (Marcello Mastroianni), um sujeito, até então, misterioso, que lhe persegue em busca de notícias sobre alguém. Mais tarde, descobre-se que ele fora amante de Isabelle (Sophia Loren), esposa de Olivier. A dondoca, por sua vez, já não suportava mais o marido e, ao ser informada sobre sua morte, reage com a maior naturalidade do mundo, agradecendo a quem lhe traz a boa nova. Sergei, por sua vez, passa boa parte do filme se esgueirando lá e cá na tentativa de um novo encontro a sós com Isabelle, ainda que seja o último. Os dois personagens só vão se encontrar lá pelas tantas, e a presença de seus intérpretes no elenco do longa soa como uma simpática homenagem de Altman aos dois, que contracenaram tantas vezes, em títulos como Os girassóis da Rússia (I girasoli, 1970). São dois coadjuvantes de alto luxo, como indumentárias de gala em um guarda-roupa, daquelas que só se usam em ocasiões mais que especiais.


Além deles, outros grandes atores brilham em aparições fugidias, condizente com a narrativa que se desdobra em várias subtramas. Existe espaço até mesmo para uma ainda jovem Julia Roberts, em um dos seus primeiros trabalhos depois do estrondo de Uma linda mulher (Pretty woman, 1990). Na pele de Anna Einsenhower – como o presidente, segundo ela mesma gosta de enfatizar -, ela permanece às turras com Joe Flynn (Tim Robbins), com quem precisa dividir um quarto de hotel devido à falta de outras habitações livres por ali. Em alguns dias, eles se estranham e se amam alternadamente, num clássico caso de briga de gato e rato. A dupla já havia sido dirigida por Altman no ótimo O jogador (The player, 1992). No quesito comicidade, porém, a subtrama mais interessante é a que envolve Nina Scant (Tracey Ullman), Regina Krumm (Linda Hunt) e Louise Hamilton (Teri Garr), três editoras que disputam palmo a palmo a cobertura dos desfiles para apresentar furos de reportagem em suas respectivas publicações. Todas elas, cada qual a seu tempo, caem na armadilha de Milo O’Brannigan (Stephen Rea), um sujeito esperto que as coloca no bolso ao conseguir fotos comprometedoras delas, postas de joelhos, literalmente.

O clima de comédia de costumes atravessa toda a duração de Prêt-à-porter, e tem a capacidade de fisgar o público mais afeito a críticas bem construídas. Altman não livra a cara de ninguém, e não economiza nas ironias e nas situações embaraçosas em que vai envolvendo seus personagens, como quem brinca com títeres cujos movimentos obedecem à vontade soberana e inquestionável de seu manipulador. Todas as histórias são costuradas – com o perdão do trocadilho – pelas reportagens de Kitty Potter (Kim Basinger), que corre de um lado para o outro disposta a arrancar revelações importantes de seus entrevistados, e é uma espécie de espectadora deslumbrada com o evento e os participantes. À medida que dispara suas perguntas, ela contribui para expor as disparidades e todo aquele caráter fútil que se relaciona à moda, mas sempre disposta a entender melhor como funciona aquele mundinho. Entretanto, depois do último desfile – a apoteose do sarcasmo da narrativa – ela perde a paciência de vez e explode. A sentença do cineasta é pesada: toda essa confluência de nomes, estampas e combinações é uma grande bobagem e, quiçá, nem possa ser considerada como arte – o detalhe é que o próprio cinema sofreu e ainda sofre com o mesmo estigma, sobretudo por, à diferença de outras manifestações artísticas, depender da tecnologia. Concordar ou não com a afirmativa cabe ao público, que é apresentado a mais um ótimo de trabalho de um dos realizadores mais irreverentes de seu tempo.

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