O surgimento de um afeto improvável em O filho


Silêncios e inconclusões fazem parte da filmografia dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne. A dupla de diretores costuma focalizar histórias simples e honestas, que trazem à tona o conceito de humanismo em meio às circunstâncias mais desfaroráveis ao seu surgimento. Em O filho (Le fils, 2002), essas características de seu cinema não deixam de aparecer. Olivier (Olivier Gourmet) trabalha como instrutor de carpintaria em uma escola para jovens aprendizes. Seu ofício é seu fôlego de vida, o que significa uma dedicação intensa ao exercício da função em detrimento de uma rede de vínculos afetivos a ser mantida. Ele é um homem de poucas palavras, cujo fardo é o asssassinato do único filho, do qual ainda não se refez, o que pode ser sentido em sua retração sentimental e nos seus olhares imprecisos e distantes. Como forma de aliviar a dor que o habita, Olivier está sempre à disposição dos meninos que dependem dos seus ensinamentos a fim de se qualificarem para uma profissão. São raríssimos os momentos em que o personagem está em casa descansando e, quando está, procura aliviar uma outra dor, sendo esta física, em sua coluna.

Porém, entre tantos garotos que passam pela escola, um deles é singular, no sentido negativo do termo. Assim como os demais de sua idade, Francis (Morgan Marine) está ali para aprender um ofício, mas carrega um erro do seu passado recente que o liga a Olivier. Foi ele quem matou o filho do instrutor, que está ciente da verdade quando o recebe como seu aluno, ao passo que o garoto não tem a menor ideia de que está sob a responsabilidade de um homem de quem ele tirou o que lhe havia de mais precioso. Então, inicia-se entre eles uma convivência restrita apenas ao ambiente da escola. Olivier faz questão de instruir Francis, como quem deseja ter sob seu controle, de alguma maneira, o responsável pela tragédia da sua vida. Entretanto, ele não dá sinais de que odeia o garoto, mas parece tentar entender o que pode tê-lo levado a tal crime, se é que alguma explicação também possa servir como justificativa para um assassinato.


Assim como vários outros filmes dos Dardenne, O filho discute as sutilezas das relações entre genitor e rebento, ainda que, em certos casos, os laços que unam ambos não sejam sanguíneos. O amor de pai de Olivier se manifesta justamente pela ausência do seu único filho e, pelo que o roteiro escrito pelos próprios irmãos permite entrever, ele semprea fora um homem amoroso e cuidadoso com o filho, ainda que nunca sugira que fosse dado a demonstrações muito explícitas de carinho. O filme também aborda a questão do abandono, traduzida na figura de Francis, um garoto como tantos outros de sua idade e classe social, que reage às circunstâncias apresentadas pela vida como um animal que manifesta seu instinto de sobrevivência ao menor sinal de ameaça. Os realizadores voltariam a tocar no assunto em seus filmes seguintes, como A criança (L’enfant, 2005) e O garoto da bicicleta (Le gamin au vélo, 2011), que também contam com enredos simples e situações-limite no que tange ao desespero da solidão sentimental. Em seus caminhos tortos, Francis tem uma grande carência e Olivier é capaz de enxergá-la com sua sensibilidade discreta, o que nem passa pela cabeça de Magali (Isabella Soupart), sua ex-mulher, que também carrega a dor da perda do filho. Ela se choca com a crescente proximidade entre Olivier e Francis, e o instrutor não sabe explicar a razão de sua atitude, apenas pede que ela não interfira.

Existe uma sensibilidade rara e acurada em O filho, que o torna uma pequena joia dentro do gênero dramático. A câmera dos diretores é sempre cautelosa, uma espiã que jamais interfere no cenário em que está inserida. Os irmãos nos fazem observadores pacientes de uma espiral de conflitos internos silenciosos, que se manifestam externamente em gestos contidos e em palavras esparsas. Porque nem sempre há palavras para nomear o que sentimos ou o que pensamos. E o indizível sempre encontra espaço no cinema dos Dardenne, por sua capacidade única de traduzir sentimentos que as palavras não explicam. Aqui, o afeto surge de modo inesperado, pavimentando o caminho acidentado do coração de dois indivíduos inábeis. Nesse sentido, como traduzir o ser humano em imagens e palavras? Conscientes do alto grau de dificuldade dessa tarefa, eles preferem contemplar e deixar espaço para inferências particulares do público, gerando a tal inconclusão apontada anteriormente como um dos elementos típicos da obra dos Dardenne. Ao manter um canal aberto para diferentes olhares, eles reclamam a experiência individual do espectador, que pode preencher (ou não) certos vácuos propositais (ou não).

A crueldade do mundo e a dura lida em meio a uma realidade desfavorável encontram em O filho uma abordagem minimalista, distante de cenas chocantes e/ou violentas. A dupla de cineastas não tem por hábito recorrer a sequências cruas nesse aspecto. E, com isso, eles conseguem inscrever o filme em uma espécie de linha tênue entre sucessão de cenas impactantes e uma estética “limpa”, que emulsiona possíveis gorduras na arquitetura dramática e se resigna a um despojamento que deixa a história fluir e respirar. Gourmet tem nas mãos um daqueles personagens de silêncios eloquentes, e é todo alma e coração nos seus momentos em cena. Ele foi premiado em Cannes por seu trabalho, e méritos não lhe faltaram para isso. A certa altura de O filho, a aterradora verdade que une Olivier e Francis se torna conhecida do garoto que, arisco e amedrontado, só pensa na possibilidade de fuga. Mas, naquele pouco tempo de contato entre ele e o instrutor, que inclui uma pequena viagem de carro estrada afora, surgiu uma centelha de inacreditável bem querer, a tábua de salvação de que Francis depende. Cabe ao garoto se deixar tocar por esse sentimento que vem de onde menos se imagina, uma demonstração clara do otimismo dos Dardenne, que, mais do que explicar o homem e sua complexidade, estão interessados em apresentá-la e constatá-la.

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