As contradições sentimentais em Sonhos eróticos de uma noite de verão


Por vias irônicas, Woody Allen dialoga com William Shakespeare em Sonhos eróticos de uma noite de verão (A midsummer night’s sex comedy, 1982), propondo uma releitura toda sua para uma das peças teatrais mais famosas do bardo inglês da era elizabetana, como se pode inferir pelo título nacional da produção. O cineasta elege para si o papel de Andrew, um inventor de bugigangas fadadas ao fracasso que vive em uma casa de campo junto com a esposa Adrian (Mary Steenburgen) e isolado do contato com a cidade grande. Nesse cenário bucólico, ele recebe as visitas de outros dois casais, um deles prestes a subir ao altar e formalizar diante da sociedade o amor que dizem sentir um pelo outro. Trata-se de Ariel (Mia Farrow) e Leopold (José Ferrer), cuja diferença de idade nunca se mostra como um problema para ambos. Ele é um professor universitário pedante e cheio de argumentos para contestar a existência de Deus, um pavão que adora destilar conhecimento. É uma das figuras recorrentes nos filmes de Allen, que ele recentemente utilizou mais uma vez em Meia-noite em Paris (Midnight in Paris, 2011).


Observações à parte, logo que ele chega com a futura esposa à casa de Andrew, descobre que o primo já havia tido um caso com ela alguns anos antes, o que acaba sendo a primeira pulga colocada atrás da orelha de um dos personagens. Ter consciência desse fato antigo tempos depois causa uma séria insegurança em Leopold, sobretudo porque ele não descarta a possibilidade de que os dois ainda possam sofrer uma recaída. Mais adiante, o público pode comprovar que é exatamente o que acontece. Andrew está entediado em seu casamento com Adrian, como confessa ao primo em uma rápida conversa a sós. O terceiro casal, por sua vez, é formado por Dulcy (Julie Hagerty) e Maxwell (Tony Roberts), cuja estabilidade também não tarda a ser abalada. Portanto, estamos diante de um filme que brinca com as possibilidades do coração de maneira cômica, expondo a insegurança dos amantes e algumas dificuldades por que pode passar uma relação a dois, dando a entender que os sentimentos podem ser o que de mais instável reside no homem.

Essa temática da inquietude amorosa é uma constante na filmografia de Allen. Quase chega a ser possível afirmar que ela está presente em praticamente todos os seus filmes, inclusive os mais recentes. Para quem acompanha os trabalhos do cineasta sem se preocupar inteiramente com sua ordem cronológica, fica mais evidente que ele vem refinando, com o passar dos anos, esse e outros assuntos que elegeu como diretrizes de seu ofício. No caso de Sonhos eróticos de uma noite de verão, existe um leve pessimismo embutido no discurso cômico proferido por seus personagens. Essa visão algo negativa dos sentimentos também é a tônica do recente Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (You will meet a tall dark stranger, 2010), que coloca em xeque a durabilidade do amor e retrata pessoas sem rumo e, por vezes, dependentes da magia para encontrar alento em suas existências e construirem seus próprios castelos de cartas. Os personagens da comédia em análise seguem esse fluxo, vivendo uma ciranda de encontros e desencontros que também oferece a inserção do componente sobrenatural, representado por uma das invenções de Andrew, que, aos trancos e barrancos, demonstra alguma capacidade de funcionamento, servindo para comprovar que, ao direcionar seus olhos para o futuro, o ser humano enxerga apenas névoas, sendo incapaz de discernir o que realmente está diante de sua visão.


O filme também apresenta um diálogo notável com a obra de Ingmar Bergman, maior influência cinematográfica do realizador novaiorquino. Aqui, a principal referência é ao Bergman de Sorrisos de uma noite de amor (Sommarnattens leende, 1955), que também restringe seus personagens a um espaço-tempo reduzido para analisar, sob uma ótica escarnecedora, as pequenas vilezas às quais a paixão e o desejo podem conduzir quem os sente. Nesse sentido, ambos os diretores se mostram ótimos chargistas de um dos aspectos cruciais da condição humana, deixando claro que faz parte da vida a efemeridade. Entretanto, há uma diferença entre os filmes no que tange à recepção do público e da crítica. Enquanto o filme de Bergman acabou se tornando seu primeiro sucesso internacional, o de Allen se encontra ainda hoje entre os menos celebrados de sua carreira, visto que muitos os consideram apenas um pouco mais do que mediano. De fato, ele já demonstrara poucos anos antes que era capaz de abordar o mesmo tema de forma mais eficiente, que é o caso de Manhattan (idem, 1979), obra cheia de méritos, do roteiro à fotografia. Mesmo assim, um Allen menos inspirado ainda consegue ser mais relevante que boa parte das produções que lhes são contemporâneas, chavão com o qual até quem não é seu fã é capaz de concordar.

Sonhos eróticos de uma noite de verão também assinala o seu encontro com Mia Farrow, que viria a se tornar a sua musa principal nesse e em seus doze filmes seguintes, culminando com o desconfortavelmente verossímil Maridos e esposas (Husbands and wives, 1992). Na pele de Ariel, a atriz expõe nossa audição a uma voz de tom esganiçado e nossa visão a uma personagem tao desastrada quanto seus companheiros de cena, sempre metendo os pés pelas mãos na tentativa de entender e atender aos próprios sentimentos, que lhes são sempre enigmáticos. Tanto ela quantos os demais personagens passam o filme inteiro coxeando entre vários pensamentos e praticando ações que raramente (ou nunca) condizem com aquilo que dizem. Como se trata de uma comédia, a produção tem seus momentos de boas risadas, como na sequência em que Andrew consegue fazer sua bicicleta voadora funcionar e fala com Ariel pela janela, ou quando ele consegue sobrevoar a floresta com o veículo para levá-la ao encontro de Maxwell, que arde de amor à sua espera embrenhado na mata. Nesse cenário, aliás, torna-se patente a proposta apresentada desde o começo da história, que pode ser lida como um conto moral que zomba das possibilidades do coração, reino das oscilações sentimentais e de certas perspectivas ilusórias.

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