Para Roma, com amor e as recorrências de um cineasta


Woody Allen é um cineasta de recorrências. Não se trata de uma característica exclusiva sua mas, talvez, ele seja um dos mais imediatamente lembrados quando se pensa em diretores que revisitam constantemente assuntos prediletos. A sua recorrência mais recente tem sido a de filmar histórias ambientadas em cidades europeias, um passeio que se já se estende há sete anos e que sofreu apenas uma interrupção. Esse passeio muito agradável ganhou com Para Roma, com amor (To Rome with love, 2012) um novo exemplar. Concebido logo após o estrondoso sucesso de Meia-noite em Paris (Midnight in Paris, 2011), o filme foi alvo de expectativas de seus entusiastas e também de espectadores que não o têm como tão querido assim e, ainda que um tanto aquém deste último, exibe méritos para ser qualificado como mais um dos seus maravilhosos exercícios de estilo. Allen parte de quatro premissas básicas para apresentar histórias de estrangeiros e estadunidenses na Cidade Eterna que jamais se cruzam, cada qual com seu timing particular. E, para seus fãs e admiradores, ele mesmo volta a atuar em um filme seu, algo que não fazia desde Scoop – O grande furo (Scoop, 2006).

O filme se vale de alguns estereótipos caros aos romanos e aos italianos, de um modo geral, deixando claro que se trata do olhar de um turista sobre a cidade. Entretanto, não é um olhar superficial demais, já que estamos falando de um dos cineastas mais inteligentes de seu tempo, que sabe dosar sarcasmo e autoironia de modo irresistível. Para dar vida a tipos neuróticos e verborrágicos, Allen escalou um ótimo elenco, todo em sintonia dentro dos seus respectivos núcleos narrativos, os quais compõem um painel divertido das mazelas do coração e da razão tendo Roma como pano de fundo. A cidade, infelizmente, é muito mais coadjuvante do que “deveria”, diferentemente do que aconteceu em Meia-noite em Paris. Sua câmera privilegiou cenários e ambientes badalados da capital italiana mas, nem por isso, habituou-se à obviedade, apresentando também espaços menos famosos dali. E, antes de mais nada, Para Roma, com amor representa um feliz deslocamento do diretor da Cidade Luz para a Cidade Eterna. Assim, tem-se por exemplo, Jesse Eisenberg e Ellen Page dando vida a Jack e Monica: ela é amiga da namorada dele e, uma vez convivendo por alguns dias no apartamento que o rapaz divide com sua garota, eles acabam apaixonados.

As outras tramas são conduzidas com muito bom humor, e incluem um cantor de ópera que só consegue soltar a voz no banheiro, uma italiana que se perde na cidade e vive mil aventuras até reencontrar seu marido e um sujeito pacato que vive uma reviravolta em seu cotidiano por conta do assédio inesperado dos jornalistas que querem informações detalhadas sobre todos os seus hábitos diários. Cada uma por seus motivos, as histórias são muito divertidas, e demonstram o quanto a escrita do diretor continua certeira, perceptível nos diálogos ótimos e na criação de situações que surpreendem pelo que trazem de bizarro, mas que são tiradas da própria realidade. Muitos podem acusar Allen de repetição. Entretanto, se se observa a essência da vida, nota-se que a repetição é algo inerente à própria existência. As histórias se repetem, a vida se repete, formando um conjunto de eventos e ações típicas nas quais é fácil se reconhecer. Quem nunca se viu tomado por uma paixão que cega, tal qual Jack se sente diante de Monica, mesmo que tudo ao redor aponte para resistir? Aliás, o núcleo desses personagens traz o elemento fantástico/obscuro que, vez por outra, surge nos filmes do diretor. Aqui, é a presença do personagem de Alec Baldwin: não se sabe até onde ele é um homem que Jack conhece em suas andanças por Roma, se é uma espécie de consciência falante ou se Jack é esse homem quando estava em sua juventude, e que, agora, revê seus passos do tempo em que morava na cidade.


Para Roma, com amor também traz uma nova colaboração entre o diretor e Penélope Cruz, a exemplo do que aconteceu em Vicky Cristina Barcelona (idem, 2008). Na pele de uma prostituta que entra no quarto do cliente errado e tem que sustentar a farsa de ser a sua esposa, ela esbanja desenvoltura no italiano, língua na qual se comunica do começo ao fim da história. A atriz está novamente deslumbrante e engraçada, oferecendo vários dos melhores momentos do filme com sua presença em cena, sempre luminosa, atraente e algo constrangedora para alguns de seus clientes, que ela encontra em uma festa cujos convidados seriam a “nata” da sociedade romana. Aliás, cabe dizer aqui o quanto os italianos são hipócritas, e Allen capta essa péssima característica da população do país através dessa história. Ele também repete outras parcerias: com Judy Davis, a quem já havia dirigido em Maridos e esposas (Husbands and wives, 1992) e Celebridades (Celebrity, 1998) e com Alison Pill, que também esteve sob sua batuta em Meia-noite em Paris. Elas interpretam Phyllis e Hayley, esposa e filha de Jerry (o próprio Allen), um cara para quem a aposentadoria é sinônimo de morte, segudno o diagnóstico impassível de Phyllis. Ele vê em Antonio (Alesandro Tiberi), o cantor de ópera de chuveiro, a chance de voltar aos seus tempos de diretor musical, mesmo que só tenha delírios extravagantes em seu currículo pregresso.

O clima do longa é o de um itinerário bem-humorado por pequenos e grandes percalços que a vida pode apresentar sob o ângulo de um diretor que já foi definido pela crítica como um cronista genial da vida sem rumo. Allen flagra paixões, desencontros, medos e neuroses como ninguém, e Roma, antes de mais nada, serve a comprovar que, como qualquer outro lugar do mundo, a instabilidade humana reina sobre tudo o que se faz. Cada um de nós sabe bem pouco sobre si mesmo e o outro, e esse alto grau de incerteza proporciona toda sorte de surpresa nos relacionamentos interpessoais, que podem ser a junção da sua e da minha neurose, geradora de uma histeria dúplice. Todas essas constatações desfilam pela tela com a fluidez adorável que o realizador sabe imprimir à sua obra, fazendo o espectador se surpreender quando as tramas já estão se aproximando do seu epílogo, o que também é habitual em se tratando de Allen. Outro (bom) hábito seu verificável com nitidez em Para Roma, com amor é a direção de atores acertada. O intragável Roberto Benigni é o melhor exemplo dessa capacidade algo mágica que Allen possui de extrair bons desempenhos do intérpretes que estão sob seu comando, e ilustra com apuro a cultura de celebridades instantâneas do nosso tempo.

As participaçõe especiais de atores italianos também conferem um charme todo especial ao filme: Ornella Muti é pura graciosidade na pele de uma atriz famosa que está rodando seu novo filme pelas ruas da capital, enquanto Ricardo Scamarcio - conhecido no circuito brasileiro por títulos como O primeiro que disse (Mine vaganti, 2010) – encarna um ladrão cujo roubo confuso termina na cama de um hotel ao lado da mocinha perdida citada anteriormente. E, assim, vamos percebendo que o interesse de Allen é discorrer novamente acerca de seus temas preferidos, sem a menor preocupação de (re)inventar a roda ou supreender com estripulias narrativas ou técnicas. Para Roma, com amor representa o seu olhar de artista infiltrado na cidade para extrair dela não só o que pode haver de mais particular, mas também o componente de universalidade, que se encontra em seus habitantes; e Allen investe mais na ciranda de amores e paixões, com deboche e sutil desespero desastrado. Amores são amores em Nova York, Londres, Paris ou Roma, ao menos na estrutura básica. As nuances desse sentimento são capturadas em um segundo instante, o que o diretor faz, prevalentemente, pela via do humor sarcástico, autenticado em um timing todo especial. (Para lusófonos, ainda existe o fato de “Roma” ser “amor” ao contrário, uma coincidência muito sugestiva – dá vontade de amar em Roma... ) Assim, o filme se parece com uma missiva arguta e alvissareira a uma cidade que serve muito bem a delírios imaginativos e observações cáusticas sobre nossas contradições, nossas manias e recalcitrações, oriundas de uma fonte básica: o impedimento moral, mais uma das várias recorrências allenianas também trazidas à tona em seu flerte com a Itália, à qual contempla de um belvedere.

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