Transylvania, um percurso sensorial e rítmico por culturas distantes


Zingarina (Asia Argento) descobriu há pouco tempo que espera um flho do namorado, o que a leva a viajar quilômetros à sua procura, uma vez que ele simplesmente desapareceu de sua vida. Nessa jornada, muito longe de ser fácil, uma explosão multicolorida e polifônica a espera, e traz à existência o mote de Transylvania (idem, 2006), décimo quinto longa-metragem de Tony Gatlif. O diretor oferece uma viagem intensa pelos descaminhos da protagonista, que, com pouco tempo na região que dá título ao filme, descobre que seu desejo de seguir ao lado do homem que ama não poderá mais ser concretizado. Ele não a quer mais, avisa que é melhor desistir para não se machucar ainda mais. Como se bastasse um aviso de desistência para interromper o fluxo da dor de um sentimento não mais (talvez nunca) correspondido. A rejeição desorienta Zingarina, e dá início a tal viagem sensorial que tanto enriquece o filme. Gatlif espalha pela tela uma sucessão de cores, formas e sabores, tornando-o perfeitamente adequado à expressão “festa para os sentidos”.

A partir do momento em que a personagem perde o rumo e se embrenha pelos recantos da região romena, Transylvania vai abrindo mão de uma estrutura narrativa ortodoxa, evidenciando a predileção do diretor em conduzir de modo mais intuitivo a sua proposta de olhar para o cruzamento de culturas. Ao seu lado, Zingarina passa a ter a companhia de Tchangalo (Birol Ünel), um homem de traços rudes, mas também capaz de atos de amabilidade. Eles alternam carinho e uma certa agressividade amorosa que os mantém, de certa forma, apoiados um ao outro. Não se trata de uma história de amor tradicional – e Ünel já demonstrou dar conta de personagens como esse, vide o seu belo desempenho em Contra a parede (Gegen Die Wand, 2003). Eles se repelem e se atraem quase sistematicamente, num magnetismo oscilante que faz oscilar também o desejo do público de vê-los sempre perto. Seja como for, Tchangalo é o correspondente vivaz de que Zingarina precisa, o murro de sinceridade do qual ela depende para caminhar.

Por sua configuração de road movie e pelo destaque concedido a paisagens e sons instigantes, Transylvania é quase uma sessão de hipnose audiovisual. A produção exala força e intensidade, revelando-se, a cada fotograma, um percurso sensorial e rítmico por culturas distantes. A Transilvânia de Gatlif nada tem a ver com a famigerada região associada a um certo Conde Drácula. Ele prefere espiar as áreas rurais dali, sua gente, seus costumes, seus pensamentos, compondo um estudo antroplógico apartado de qualquer didatismo ou discurso reducionista. Gatlif elege a observação, o contato travado a partir do olhar, afagando retinas exauridas de visuais forjados por tecnologias computadorizadas. E, com isso, exibe verdade e pungência, embevecendo o público. Os maiores “homenageados”, por assim dizer, são os ciganos, povo cuja peculiaridade mais flagrante é exatamente o nomadismo. Imbuída de uma espécie de espírito cigano, Zingarina percorre aldeias, estradas e casebres como quem leva sua procura por um lugar todo seu às últimas consequências. Aqui, entretanto, importa muito mais o percurso em si do que a chegada aonde quer que seja. Assim como a consciência de que, aonde quer que se vá, levam-se a alma e o espírito junto.


Transylvania, portanto, será melhor digerido se encarado como um espetáculo de fruição. Não exatamente no sentido estético do termo, porque Gatlif não se restringe a uma abordagem higiênica dessa caminhada, mas no sentido da experimentação de novos ângulos e olhares para temas milenares, mesmo que seja para discordar deles no fim das contas. Existe uma justaposição de elementos muito bem-vinda ao filme, algo que também remete à cultura cigana, cujos componentes adoram mesclar cores e texturas distintas. As duas característias mais notáveis desse povo são incorporadas modo muito orgânico por Gatlif: o filme não apresenta, em momento algum, um clima de documento contemporâneo sobre gente e lugares exóticos, como se se tratasse do olhar de um estrangeiro embasbacado com tudo aquilo que é diferente de sua própria cultura. Do ponto de vista linguístico, Transylvania também é rico: os idiomas convivem harmonicamente, seja entre diferentes falantes, seja dentro de um mesmo falante. A própria Zingarina troca de idioma quase todas as vezes em que precisa trocar de interlocutor e, assim, ouve-se francês, alemão, inglês, italiano e até um pouco de romeno no caldeirão fervente de Gatlif.

E o que dizer da trilha sonora? Poucos filmes recentes ostentam uma composição musical tão excêntrica e, ao mesmo tempo, tão envolvente quanto esse. Não é coincidência quando se pensa nas origens múltiplas do diretor. Ele é nascido na Argélia, tem pais ciganos, ascendência espanhola e, na verdade, seu nome de batismo é Michel Dahamani. Portanto, a junção de elementos diferentes que carcateriza o seu cinema nada mais é do que o reflexo de sua própria condição multiidentitária. E ele impinge essa multiplicidade aos intérpretes principais, colocando a italiana Argento e o alemão Ünel se comunicando em outras línguas que não a suas maternas. Transylvania é um mundo de grandes novidades – ao menos, para alguns olhos ocidentais – sendo descortinado cena a cena, é uma iguaria cinematográfica para amantes de boas histórias narradas com base em belas canções, atores tarimbados e direção segura e ousada. A fusão de Gatlif/Dahamani traz música para os olhos, poesia sinestésica, confluência idiomática e uma estrada de muitos rumos que reflete a ânsia pelo bem querer e pelo viver lado a lado.

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