Melodrama e reviravoltas em Depois do casamento


Conduzido pela mão algo férrea de Susanne Bier, Depois do casamento (Efter Brylluppet, 2006) oferece uma trama pouco original sobre reencontro e recomeço, o que não chega a se configurar um demérito. O foco está sobre Jacob Petersen (Mads Mikkelsen), um dinamarquês radicado na Índia, onde mantém um pequeno orfanato e exerce toda a sua vocação filantrópica e cujo passado permanece obscuro durante boa parte da narrativa. Os fragmentos de seus anos antecedentes começam a surgir quando ele recebe uma proposta altamente irresistível de um milionário que está interessado em injetar uma alta quantia de dinheiro naquele empreendimento. Entretanto, com essa oferta surge também o primeiro grande impasse do protagonista: a condição imposta pelo tal milionário é que Jacob viaje de volta até a Dinamarca e o conheça. Jacob hesita porque não tem a menor vontade de retornar ao seu país de origem, seja porque não se sente mais ligado a ele, seja porque as crianças que estão sob sua responsabilidade precisam da sua presença constante.

Sua oscilação de pensamento se encerra quando ele opta por, enfim, voltar à Dinamarca. Então, conhece Jørgen (Rolf Lassgård), que leva uma vida de luxos e caprichos propiciados pela riqueza ao lado da esposa Helene (Sidse Babett Knudsen) e da filha Anna (Stine Fischer Christensen). A personalidade de Jørgen é um tanto instável: ele é capaz de agir com extrema delicadeza em determinada situação para, no momento seguinte, discursar cinicamente e expor sua mentalidade tacanha. Essa dubiedade incomoda profundamente Jacob, que não concebe a ideia de voltar a morar na Dinamarca, outra das condições impostas pelo milionário para que seu orfanato seja contemplado com a doação. Mais adiante, Bier começa a esclarecer o espectador, através das descobertas do próprio Jacob, sobre as reais intenções de Jørgen e sua insistência para que Jacob continue por perto. Cabe comentar que a diretora imprime um tom meio novelesco a Depois do casamento, mas sua condução precisa e, certas vezes, austera, afasta a possibilidade de reduzir o filme a um mero dramalhão.

A propósito dos títulos original e brasileiro do filme, o tal casamento depois do qual está subentendida alguma reviravolta é o de Anna e Christian (Christian Tafdrup). Os jovens estão apaixonados e dedicam frases de amor intenso um ao outro, e a união acontece sob a anuência dos pais da menina, que Jørgen insiste que Jacob conheça. Por conseguinte, ele acaba encontrando Helene, que logo o reconhece do seu passado, e então uma nova reviravolta sobrevém à narrativa. Helene e Jacob foram namorados anos atrás, e Anna é fruto do romance experimentado pelos dois na juventude, quando Jacob era um louco inconsequente, de acordo com a própria Helene, o que a levou a esconder o fato de estar grávida na época. Essa descoberta mexe com os rumos das vidas dos personagens e traz à tona a habilidade da diretora em administrar conflitos humanos sem permitir que a pieguice invada o terreno, assim como o maniqueísmo tão tentador em histórias como essas. O trio principal lida frontalmente com os seus erros, ainda que adotem comportamentos imaturos em certos momentos.


Os trunfos de Bier em Depois do casamento são seus talentosos intérpretes e a fotografia em tons sóbrios e frios que se correlacionam a abordagens epidérmicas de seus personagens. Mikkelsen é um ator de gabarito, cuja face ainda é desconhecida para boa parte do público brasileiro. Seu trabalho mais popular, até o momento, foi como o vilão de 007 – Cassino Royale (Cassino Royale, 2006), que, entretanto, revelou-se uma aparição discreta. Além disso, esta é a sua segunda colaboração com Bier, já que ele também esteve no elenco de Corações livres (Elsker dig for Evigt, 2002), exibido muito discretamente no circuito carioca em 2004 contemporaneamente ao seu conterrâneo Reconstrução de um amor (Reconstruction, 2003). O ator oferece um desempenho admirável, dando vida a um homem de emoções contidas que se vê forçado a encarar seu passado quando ele volta à tona da maneira mais inesperada possível. Suas nuances interpretativas são verificáveis a cada cena e, em 2012, Cannes reconheceu o seu talento, conferindo-lhe o prêmio de melhor ator por Jagten (idem, 2012). Os demais atores do elenco também apresentam performances notáveis, especialmente Lassgård, que tem nas mãos um personagem complexo ao qual se pode dedicar sentimentos contraditórios. É pena que Tafdrup destoe um tanto dessa coesão do elenco, com seu desempenho fraco, ainda que tenha as mesmas chances de brilhar que os demais.

Depois do casamento rendeu a primeira indicação de Bier ao Oscar de filme estrangeiro, mas bateu na trave. Sua vitória chegaria anos depois, através de Em um mundo melhor (Hævnen, 2010), no qual mantém seu estilo dramático e fervente. Especificamente no filme em análise, o que mais salta aos olhos é a capacidade da diretora em extrair sinceridade em cada cena e saber dosar os conflitos de modo a não tornar a narrativa um fardo, ainda que ela jamais chegue a recorrer a instantes de alívio cômico. A trilha sonora, por sua vez, praticamente inexiste ao longo de todo o filme. As melodias pulsantes provêm das vozes dos personagens, cujos timbres variam de acordo com o nível de suas emoções, postas em ebulição por diversos momentos de enfrentamentos e contrastes. Essa quase ausência de música, aliás, faz lembrar que estamos diante de uma das signatárias do Dogma 95, que, entre outros preceitos, abolia os sons que não fossem naturais nos filmes. Trata-se de uma cineasta de currículo ainda reduzido, mas que sabe oferecer uma abordagem madura e quase isenta de lugares comuns. Os poucos que surgem são trabalhados de maneira orgânica e afastam a noção de acasos forçados, permitindo que se pense que, na vida real, uma história como essa também possa acontecer. Cinematograficamente falando, permanece a constatação de que um melodrama levado a cabo por artistas tarimbados pode dar certo. E, em meio à fotografia de Morten Søborg, dita epidérmica, os indivíduos são redimensionados, bem como os elos que os unem.

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