O nascimento do amor: o tédio e a ilusão que arrastam o homem


Existe uma estirpe de realizadores que tem a nítida capacidade de extrair poesia de elementos corriqueiros, perscrutando aspectos cruciais da senda humana sob ângulos complexos. A essa nobre categoria pertencem nomes como Philippe Garrel, diretor de O nascimento do amor (La naissance de l’amour, 1993). Em meio ao tédio e à monotonia que rondam as vidas de dois amigos, ele concebe um estudo muito particular a respeito do sentimento mais analisado pela arte de um modo geral. Paul (Lou Castel) e Marcus (Jean-Pierre Léaud) compartilham a amizade e a indecisão diante dos fatos da vida, especialmente no que tange aos seus relacionamentos amorosos. Cada qual com suas amantes ou namoradas, eles nunca demonstram estar tomados por uma paixão avassaladora, evidenciando que a completude no outro, tão desejada pelo homem, não é encontrada por eles.

O título da obra pode sugerir uma lição sobre como começa o amor, mas trata-se apenas de uma sugestão. Garrel, na verdade, escolhe fazer uma meditação profunda e quase silenciosa deste vínculo tradicional e indispensável, elegendo as figuras desses dois homens desorientados. No fundo, não existe uma linha condutora para o filme. E, ao abrir mão de uma narrativa tradicional, O nascimento do amor se configura como blocos pontuais que revelam parte do vazio da existência, que se insinua nas pequenas coisas, nos eventos simplórios ou mesmo na ausência de acontecimentos. É daqueles filmes que reclama o aspecto contemplativo do público, isto é, requer espectadores no sentido estrito da palavras. Porque, diante dos fatos que cercam Paul e Marcus, resta apenas a observação paciente. A característica reveste o filme de uma certa repelência, deixando-o distante de grandes plateias. Nada mais lamentável. O tom intimista impresso por Garrel gera reflexões intensas e o filme ultrapassa a “função” de entreter. Portanto, O nascimento do amor é sessão obrigatória para entusiastas de um cinema que vai na contramão da obviedade.

Costumeiramente, o cineasta abre mão das cores em seus filmes, tal qual faz aqui. E essa opção sempre surte efeitos interessantes em sua obra. A ausência de colorido está para Garrel assim como a policromia está para Almodóvar. As imagens filmadas pelo francês recebem um tratamento especial ao serem vertidas para o preto e branco, tornando-se, unicamente por isso, antológicas. Nos dias em que foi rodado, já não se justificava objetivamente a escolha por essa opção, o que leva ao entendimento de que o diretor seguia e continua seguindo na contramão da inventividade técnica, elegendo a simplicidade. Mas que fique bem claro: ser simples é diferente de ser simplório. E o simples também pode perfeitamente ser sofisticado, por mais antitética que possa parecer essa observação. O longa está despojado das gorduras de um roteiro disfuncional e de uma direção extravagante, e representa a feliz união entre minimalismo e intensidade. Garrel nos diz muito com tão pouco e essa é uma qualidade admirável entre os mestres da exegese, que são tão poucos quanto certos espécimes da fauna mundial em vias de extinção. Pode-se dizer, com isso, que o cinema praticado pelo diretor tenha sérias dificuldades de encontrar guarida no cenário atual, terreno fecundo para as pilhérias e a estroboscopia.



Tanto é verdade que O nascimento do amor prescinde de um eixo narrativo que, em uma crítica sobre o filme, pode se dedicar tão-somente a tecer comentários semialeatórios sobre sua natureza difusa, como se faz aqui. Paul e Marcus são homens do dia a dia, reféns de sua própria inabilidade em lidar com os sentimentos que lhe invadem e que, em última instância, paralisam pelo medo que despertam em vez de impulsionar. Não há muito o que dizer sobre os fatos do filme em si, mas sim sobre o seu desenrolar, lento e impreciso como a própria vida. Desse modo, Cassel e Léaud são os nomes principais de um corpo de baile composto de pessoas que levitam agridocemente sobre as reverberações de suas posturas indecisas. Os intérpretes reúnem em si a destreza requerida para causar o desconforto com a indecisão de seus personagens, e travam diálogos ora banais, ora extraordinários sobre a condição humana, o ponto de contato entre todas as obras de arte, de que o filme em questão é exemplo fidedigno. Aqueles dois amigos compartilham suas frustrações, os castelos de areia dissolvidos pelo bater das ondas e a tentativa de crença em um porvir mais agradável.

E a tal indecisão que acomete Paul e Marcus vem da incerteza sobre os relacionamentos, tem recorrente na filmografia do diretor, sempre abordado com notável talento. Para citar outros nobres exemplares, há Amantes constantes (Les amants réguliers, 2004) e A fronteira da alvorada (La frontière de l’aube, 2009), que apresentam personagens à volta com tentativas de decifração do códex sentimental que está inscrito sobre eles , à semelhança de O nascimento do amor. Se uma expressão simples pudesse sintetizar o espírito que guia todo o filme, talvez ela fosse: reflexões pontuais sobre o matrimônio. O que fazer diante dessa instituição tão antiga quanto a própria humanidade? Como se posicionar diante dela? À procura dessa e de outras respostas, os amigos caminham a esmo, como se a pudessem encontrar na próxima esquina um modo de dirimir suas inquietações. Trata-se de um cinema de revoluções interiores, de mudanças que se processam lenta e gradualmente, e que colocam o espectador em contato com partes de si que não são exatamente as mais agradáveis. Garrel tem esse estranho e incômodo poder. Se se concorda com ele ou não é uma questão secundária, mas referir-se a O nascimento do amor como uma pequena gema é uma observação factual.

Com planos-sequência cuidadosamente concebidos, o filme é o reino da abstração, que pede licença para entrar e se instala discretamente nas frestas do coração que lhe são abertas. Tudo no filme coopera para que haja sobre ele uma aura de lenda, entorpecendo e encantando o público em escalas de intensidade muito semelhantes. Mesmo os diálogos ou as cenas que parecem dispensáveis acrescentam em meditação e análise meticulosa ao longa, que se afasta um pouco dos experimentalismos do início de carreira do diretor, embora ele prossiga até hoje em sua perseguição à dúvida e à imprecisão. O nascimento do amor auxilia na manutenção dessa posição privilegiada, com veros tempos mortos que serpenteiam por entre os instantes de mais ardor. A tal aura de lenda se reforça pela presença de Léaud em cena, ator atualmente bissexto, mas que coleciona uma série de trabalhos marcantes que confeririam orgulho a qualquer um cuja carreira os contivesse. Entre pequenos espasmos de sofreguidão e apoiado em um elenco tão encantador, está um filme que, a duras penas, tenta captar o que o homem, em sua acepção mais ampla, apresenta de fugidio. E, esculpindo diligentemente o tempo em sua proposta, Garrel encerra o filme com a inconclusão típica de quem não se preocupa em desenhar círculos fechados ou quadrados perfeitos.

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