Incorreção política e excesso de afetação em Os amantes passageiros

Há, pelo menos, uma década, Pedro Almodóvar tem se mostrado um cineasta em busca de um refinamento maior em sua filmografia, sem deixar de visitar as temáticas que lhe são caras desde o início de sua carreira no Cinema. A obra inaugural dessa fase de requinte dramatúrgico e visual, por assim dizer, é A flor do meu segredo (La flor de mi secreto, 1995) e, desde então, o espanhol vem experimentando abordar quase sempre os mesmos tópicos através de disposições narrativas diversas, sempre de maneira exitosa. Em títulos como Má educação (La mala educacíon, 2004), Volver (idem, 2006) e Abraços partidos (Los abrazos rotos, 2009), Almodóvar invadiu o terreno da metalinguagem e ofereceu tramas que passeiam pelas contradições do querer humano, bem como de seus fantasmas (ou não), alcançando o público em mais de uma instância, para o bem e para o mal, sobretudo no caso desde último. Houve até mesmo um flerte com a gramática de suspense hitchcockiano saudada inclusive por não entusiastas seus: o engenhoso A pele que habito (La piel que habito, 2011). 

Eis que, depois de todos esses anos, porém, o realizador decide beber novamente da fonte que o abastecera em seu início de carreira e concebe Os amantes passageiros (Los amantes pasageros, 2013), uma comédia rasgada cheia de altos e baixos – com o perdão do trocadilho, perceptível quando se conhece um pouco acerca da trama do longa. Não faltam incorreção política e afetação neste que é seu trabalho mais despretensioso e, ao mesmo tempo, mais cheio de alfinetadas ao estado das coisas em seu próprio país e a heterossexualidade convicta. O enredo é simples como uma esquete de um programa de humor: um avião decola de Madri com destino à Cidade do México em condições aparentemente normais, até que se verifica um problema em um dos pneus, causado por um funcionário do aeroporto que esqueceu de tirar o calço dali antes da decolagem. Então, o problema passa a ser dois: encontrar um lugar para um pouso seguro e evitar que a viagem seja o último momento da vida dos passageiros. Na iminência de partir dessa vida, cada personagem começa a liberar seus desejos, agindo como se não houvesse amanhã.

Essa é a deixa para que Almodóvar destile todo o seu arsenal irônico, transformando seu filme em uma sucessão de piadas vulgares que, não necessariamente, vão funcionar com todo o público – há que se adorar referências chulas e/ou comentários de cunho sexual. Some-se a isso uma despreocupação em caracterizar os personagens para além dos tipos pré-fabricados, cuja conduta e personalidade se tornam bem conhecidas em duas ou três cenas. Entre eles, estão dois colaboradores recorrentes do diretor: Javier Cámara, que dá vida a um dos comissários de bordo que tenta manter a animação dos passageiros diante da incerteza do fim da viagem, e Cecilia Roth, intérprete de uma mulher paranoica que coleciona envolvimentos com homens importantes e acha que o problema no avião faz parte de um complô contra ela. A esses dois tresloucados se unem mais dois comissários de bordo igualmente afetados, uma vidente que consegue fazer suas previsões a partir do contato com órgãos genitais masculinos, um matador de aluguel que, lá pelas tantas, confessa qual é sua missão atual, um empresário em uma relação difícil com a filha e um conquistador canastrão que quase leva uma de suas amantes ao suicídio.


De posse da mencionada conjunção de personagens, Almodóvar faz de Os amantes passageiros uma charge audiovisual, daí o exagero flagrante em todos os sentidos, o que pode ruborizar os mais pudicos. Não há meios-termos em seu percurso dentro do avião. Em outras palavras, cada um dá nome aos bois e age impulsivamente, sem o menor compromisso com as consequências. Afinal, não se sabe nem mesmo se elas terão tempo suficiente para chegar. As cores quentes, outra marca de seu cinema, seguem firmes e fortes aqui, tornando a aeronave em que boa parte da ação ocorre um cenário nada sóbrio, complementado pelo histrionismo do trio de comissários, que lança mão de artifícios nada profissionais para manter a calma dos que estão a bordo. O ápice dessa loucura é a performance que eles executam ao som de I’m so excited, que, ao mesmo tempo em que cai como uma luva para a situação que todos enfrentam, tem sua apreciação mais restrita a quem já carrega a música como parte da trilha sonora de sua vida.

A grande sacada de Almodóvar é se valer da situação instaurada no avião como uma metáfora para os recentes escândalos ocorridos em território espanhol. Os personagens que desfilam na tela estão na classe executiva, enquanto a classe econômica permanece adormecida sob o efeito de soníferos. Qualquer semelhança com a classe média indolente espanhola, vítima dos abusos de uma política não pensada para o povo, não terá sido mera coincidência, embora, antes do início do filme, uma inscrição tente demonstrar o contrário ao informar que os eventos apresentados no filme não tem qualquer relação com a realidade. É como se o diretor afirmasse o seu intento por meio da negação, o que é a base de toda boa ironia. Por outro lado, o apego à caricatura faz de Os amantes passageiros uma comédia irregular, que poderia se passar inteiramente no avião, por exemplo, já que as tramas desenvolvidas ao rés do chão se mostram desinteressantes. Em meio à sequência de piadas, que não livra a cara de ninguém nenhum ali, podem se alternar os sorrisos laterais, uma ou outra gargalhada e até a ausência de riso, espera-se mais do que isso de uma comédia. Seja como for, o longa é, antes de mais nada, um grande playground para Almodóvar exercitar sua verve ácida, livre do compromisso de entregar mais uma grande obra.

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