Efeitos da contemplação retratados em Blow-up - Depois daquele beijo

Depois de ter concluído o seu triunvirato de filmes sobre a incomunicabilidade e filmar um epílogo estupefaciente para eles, Michelangelo Antonioni partiu para a Inglaterra, onde concebeu Blow-up – Depois daquele beijo (Blow-up, 1996), mais um estudo profundo dos efeitos da contemplação levada a altos graus. Não se deixe enganar pelo subtítulo nacional “sedutor”: ele não acrescenta nada à narrativa; antes, serve para confundir o público, que pode ser levado a esperar uma história de amor cujo marco inicial é puro romance. Na verdade, o cineasta direciona o seu olhar para Thomas (David Hemmings), um fotógrafo de moda que leva a vida na maciota, transitando pelo mundinho artístico da Londres de seu tempo. Dono de uma postura algo lânguida, ele só sai de sua apatia quando se vê na necessidade de ser rude com as modelos que fotografa, as quais trata como meros seres passíveis de foco e enquadramento para suas lentes.

Toda a trama do filme transcorre em um pequeno arco de tempo, uma das especialidades de Antonioni, haja vista a sua proposta em títulos como A noite (La notte, 1961) e O eclipse (L’eclisse, 1962). Em um único dia, Thomas passa por uma manifestação de jovens que defendem a liberdade – espécie de precursores do que viria a ser conhecido poucos anos depois como flower power -, cumpre sua agenda de compromissos de trabalho – uma sessão de fotos para um livro de arte - e testemunha o enlace amoroso de um casal que se encontrava furtivamente em um parque. Sempre atento a detalhes, ele clica alguns momentos desse casal, até que sua presença é notada por Jane (Vanessa Redgrave), a mulher, que não gosta nada de saber que está sendo fotografada por aquele desconhecido. As fotos tiradas por Thomas são uma arma perigosa para os amantes, e ela insiste em ter as imagens, o que ele nega peremptoriamente.

Mais tarde, ele se dá conta de um detalhe crucial presente na foto, o qual decide investigar a fundo por conta própria, e esse é o nó da narrativa do longa. A sua base está no conto de Julio Cortázar, escritor cuja prosa se revela incômoda e permeada por aspectos um tanto bizarros que constam do próprio cotidiano. Bebendo diretamente dessa fonte, Antonioni faz uma exegese do olhar, envolvendo o filme com uma atmosfera ebúrnea e altamente contemplativa, que pode ter um efeito sonífero para alguns espectadores: são os famigerados tempos mortos, que, aqui, têm toda a relevância. O andamento lento da trama é ditado pela dificuldade de Thomas em desvendar o mistério da foto ao mesmo tempo em que lida com procura de Jane, que não desiste de ter nas mãos as provas de sua infidelidade, que nunca é declarada, mas sempre sugerida. Dessa característica de Blow-up – Depois daquele beijo, nasce sua beleza e seu magnetismo oscilante.  


Também é interessante notar que, exatamente 15 anos depois, outro diretor se valeu de uma premissa semelhante para um filme: foi Brian De Palma, que, ao filmar Um tiro na noite (Blow out, 1981), estabeleceu um diálogo muito interessante não apenas com a obra hitchcockiana, mas também com esse trabalho de Antonioni. A diferença mais imediata entre ambos, porém, é que o foco de De Palma está nos sons, e não nas imagens. De qualquer maneira, o longa em questão é um pouco menos inspirado que os anteriores do italiano. Coincidentemente, é o seu primeiro filme rodado em língua inglesa e filmado em parte fora de seu país de origem, e também conquistou um bom retorno financeiro nas bilheterias, chegando a um faturamento quase 20 vezes maior que o seu orçamento. A crítica da época louvou a ousadia do filme, que, com seu sucesso comercial, cooperou com o processo de libertação de Hollywood de sua “lascívia puritana”, nas palavras daquele tempo. Nada que hoje possa realmente surpreender nossa visão, porém. Ainda assim, houve quem o vislumbrasse como uma obra seminal, comparável a títulos como Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). Se se trata de um exagero, fica por conta de cada um dizer após ver o filme.

Subjetividades à parte, o fato é que Blow-up – Depois daquele beijo representou uma mudança de ares na carreira de Antonioni, que deixou de lado boa parte da introspecção flagrante de seus filmes anteriores para abraçar uma estética mais vibrante e jovial, por assim dizer. Ainda que tenha investido novamente em uma conjuntura de contemplação, aqui há espaço para arroubos visuais e sonoros que não se encontravam antes em sua obra, o que, para o bem ou para o mal, demonstra a sua versatilidade. Para efeitos de comparação, o filme está para Antonioni como Ponto final (Match point, 2005) está para Woody Allen e, curiosamente, ambos partiram para o mesmo país ao engendrar sopros de renovação para suas respectivas filmografias em seus respectivos tempos. No caso do filme do italiano, o que mais depõe contra ele é a sua mornidão, que pode levar até mesmo ao desvio dos olhos da tela em alguns instantes por pura falta de interesse. É como se a languidez que havia funcionado tão bem com os protagonistas da Trilogia da Incomunicabilidade incomodasse de outra maneira aqui. Ainda assim, estamos diante de um bom filme, que consegue nos remover da indiferença com sua pulsação lenta e seus ingrediente enigmáticos.

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