Os porões obscuros e pungentes da memória e da arte em A hora do lobo


Escrever linhas de texto sobre A hora do lobo (Vargtimmen, 1968) é uma empresa hercúlea, um exercício de ousadia a que este autor se presta, ainda que essa ousadia se mescle a um certo temor. Ingmar Bergman conta aqui a jornada obscura e atordoante de Johan (Max Von Sydow) e Alma (Liv Ullmann). Pelo menos, assim nos parece nos primeiros instantes da obra. Diante da plateia, em uma expressão paradoxalmente serena e atormentada, Alma expõe descobertas sobre o marido, um pintor assustadoramente perturbado com sua própria arte e com seus demônios interiores que remetem à sua tenra infância. Esse diálogo da personagem com o público anuncia o caráter extremamente hermético do filme, bem como o alto grau de inquietude que ele é capaz de despertar. Muitas questões e fatos apresentados aqui são envoltos em uma aura de mistério, deixando o longa passível de uma série de interpretações, que, em primeira instância, asseguram sua permanência no patamar das grandes obras de arte do cinema.

A hora do lobo não segue o curso de uma linha narrativa ordinária. O roteiro mescla reminiscências doloridas e referências ao próprio passado de Bergman, com imagens que evocam a estética expressionista, magistralmente clicadas por Sven Nykvist, seu diretor de fotografia mais recorrente. O preto e branco, tão adequado à proposta de recorte e releitura da realidade tão cara ao cinema e às outras formas de arte, contribui decisivamente para revestir o filme de uma atmosfera de pesadelo. Estaria Alma divagando sobre os próprios medos e suas lacunas? Seria um sonho mau do qual ela jamais acorda durante toda a projeção? Quem é Johan, afinal? De onde vêm tanto tormento verdadeiramente? Nenhuma dessas perguntas, assim como outras que eventualmente possam surgir, encontra respostas definitivas. O filme requer nossas próprias ilações, depende das inferências que cada um de nós pode fazer diante das conjunturas que Bergman arquiteta ao longo de enxutos e doloridos 85 minutos.

Se se trata de um sonho, por exemplo, não sabemos quem está sonhando. Alma estaria no sonho de Johan ou Johan estaria no sonho de Alma? A hora do lobo é composto de ambiguidades, e é por isso que se constitui tão perturbador. Não à toa, a crítica o apontou como um filme de terror, cuja estrutura complexa e fragmentária abala as percepções do público o tempo todo. A cada nova cena, Bergman tira o chão do espectador e o deixa em contato muito próximo com as raias de loucura. O diretor sempre teve total consciência do poder imagético, ainda que a tenha manifestado com diferentes graus de intensidade ao longo de sua filmografia. Aqui, utiliza-se dessa possibilidade de modo portentoso e impávido, arrastando-nos para uma espiral de desespero e horror. Por outro lado, o fato de se tratar de uma obra aberta a muitas teorizações traz a liberdade de concebê-la mentalmente segundo as próprias convicções, e essa multiplicidade de leituras só reforça o seu caráter universal.


É sabido que a vida pessoal de Bergman foi pontuada por traumas, medos e angústias. Por mais que seja sempre perigosamente reducionista correlacionar vida do autor e obra, é inegável que os porões obscuros da memória de Johan (ou de Alma?) tenham conexão com a infância sofrida do diretor, e isso fica claro especificamente na cena em que o pintor pesca sozinho. Sua paz é abalada pela presença de um garoto que não emite um som sequer, e parece inclinado a matá-lo sorrateiramente. Até que, em uma reação de defera abrupta, ele afoga o menino, numa sequência cuja leitura mais óbvia aponta para o sufocamento dos medos e horrores da infância do pintor e, por extensão, do cineasta. O buraco existencial de Bergman era tamanho que ele o canalizou para a arte, resultando em uma obra de numerosos exemplares (nada menos que 64 filmes) e variações e desdobramentos de questões relativas ao mais basilar da existência: amor, morte, arte, depressão, medo. Sentimentos de todos nós que seus longas encampam. Junto a Persona (idem, 1966), A hora do lobo é um dos filmes mais deliciosamente difíceis de Bergman.

Von Sydow e Ullmann entregam desempenhos formidáveis como era habitual em suas parcerias com o diretor. Ambos nos conduzem por um percurso lancinante e devastador pelo que a alma humana pode ter de mais tenebroso. Em alguns momentos, o filme chega a parecer um precursor de Cidade dos sonhos (Mulholland drive, 2001), igualmente um exercício metafísico, mas também de componente metalinguístico. A direção bergmaniana, aqui, coleciona e justapõe cenas aparentemente arbitrárias, numa assemblage macabra. O ambiente insular no qual transcorre a trama é outro índice corroborador do fator medo de A hora do lobo. Circunscrito(s) a uma extensão de terra cercada de água por todos os lados, ele(s) não te(^)m para onde correr senão andar em círculos. Trata-se da ilha de Faro, eleita por Bergman o seu refúgio quando ainda estava na casa dos quarenta anos, e que serviu tão bem a vários dos seus filmes. Seguramente, A hora do lobo requer mais de um contato. Se visto pela segunda ou terceira vez, pode se apresentar menos inexpugnável ao seu espectador. De uma coisa, porém, nunca o isentará: de sua incrível capacidade perturbadora, que leva a alma e a mente a singrar em mar encapelado.

Comentários

  1. Olá, Patrick Corrêa. Antes de mais nada: parabéns pelo texto. A hora do lobo, o filme, de Ingmar Bergman é, também, por mim considerado como um dos mais difíceis e perturbadores. Os devaneios de Johan, a tensão de Alma e os demais personagens que compõe esta obra são fortíssimos. A mulher que aparece do nada e conversa com alma a respeito do caderno de Johan que conservava em baixo da cama, o anfitrião que andas pela paredes, a tentativa de homicídio contra Alma, o desespero de ambos, etc. Referencia, aqui, todas as boas cenas requer um fôlego além de nossas próprias limitações conceituais. Na Sessão Bergman que estou desenvolve, este está na lista. No mais um abraço...

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  2. Olá, Maxwell. Agradeço muito pela leitura do meu texto. Não gostei do resultado final. Mais do que outras críticas minhas, essa é cheia de impressões mesmo, dada a dificuldade de comentar sobre o filme. Ainda estou pensando nele, e talvez modifique algumas coisas no meu texto mais adiante.
    E seu blog é muito bom, parabéns pela organização e qualidade.

    Abraço

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  3. Oi Patrick. Excelente o seu texto. Para mim está perfeito, não precisa alterar nada. Eu tenho o filme em questão, gravado de um dos canais da Sky. Até agora, só tive coragem de assisti-lo uma vez. Você falou que o filme é perturbador, bota perturbador nisso. Quando terminei de ver, cheguei a pensar que estava entrando numa baita depressão. Só melhorei, curtindo minhas músicas de rock favoritas. Ainda vou encontrar coragem e vê-lo novamente.

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  4. Muito obrigado pela visita e pelo comentário, Ademir!
    É um filme bem difícil de analisar. Meu texto é apenas uma tentativa, mas fico feliz que tenha agradado.
    Como chegou ao blog? Volte mais vezes!

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    1. Olá Patrick! Achei seu blog pesquisando sobre Bergman, eu sou fã dele. Acredito que de louco, todos nós temos um pouco.
      Abraços!

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