A era da inocência: contra cinismo, cinismo e meio


São tempos difíceis esses nossos. A obrigação de se seguir à risca a cartilha do politicamente correto tem uma espécie de efeito rebote: quanto mais temos de ser polidos e cheios de eufemismos, mais artificiais se tornam nossas relações interpessoais. Com base nessa premissa atualíssima, Denys Arcand concebeu uma espécie de terceira parte de uma trilogia acidental, intitulada A era da inocência (L’age des ténèbres, 2007), um estudo atento e arguto dos imensos sacrifícios necessários em prol da manutenção do verniz nosso de cada dia. O personagem principal, Jean-Marc (Marc Labrèche), é a comprovação dessa consciência. (Mal) acomodado em um cargo de funcionário público, ele vê sua vida pessoal desandar cada vez mais, com uma esposa que não lhe dá a mínima e duas filhas adolescentes com igual falta de disposição para ouvi-lo. Seu refúgio são seus sonhos, em que ele pode ser o que quiser.

Desde os primeiros fotogramas do longa, Arcand evidencia que o cinismo é a tônica de sua proposta. O diretor demonstra convicção de que a idade das trevas chegou novamente para a humanidade, como se lê conotativamente no título original da obra. Depois de analisar as diferenças entre os sexos no imperdível O declínio do império americano (Le déclin de l’empire américain, 1986) e reunir os mesmos personagens no não menos maravilhoso As invasões bárbaras (Les invasions barbares, 2003), ele defende que estamos vivendo uma epidemia global, que atende pelo simpático nome de correção política e vem tomando de assalto o cotidiano da maioria de nós. Seja pelas palavras não ditas, seja pelo excesso de zelo em dizer outras tantas, o receio de se comprometer tem criado bonecos de cera, com expressões limitadíssimas e autenticidade minada. Jean-Marc é uma tradução de humor sarcástico da contrariedade quixotesca a esse sistema, o que pode nos fazer oscilar entre a irritabilidade e a admiração pela sua figura. O protagonista não está nem um pouco disposto a se manter nessa roda de ilusionismo.

Em seus sonhos, Jean-Marc é um escritor famoso, um artista querido e sexy, entre outras condições de vida espetaculares. Tem as mulheres que quer, os homens o respeitam e não há qualquer problema que tenha de enfrentar. Vivendo em um mundo tão desalentador, ele se vê cada vez mais tentado a se entregar aos próprios devaneios, mas ainda se propõe a últimas tentativas de se encontrar entre seus amigos, parentes e colegas de trabalho. Entretanto, o que percebe é apenas tédio, falsidade e pessoas que não estão com a menor disposição para lidar com ele. O diagnóstico de Arcand passa longe de ser animador, e nos deixa com a certeza de que é preciso encontrar logo um antídoto para esse veneno chamado correção política. Em todo caso, Jean-Marc ainda tem amigos com os quais pode conversar sem papas na língua, em diálogos que demonstram a grande verve cáustica do roteiro escrito pelo próprio cineasta. Os tabus caem por terra nessas conversas, e elas fluem com grande naturalidade e até lavam a alma do espectador por alguns instantes.



Naturalmente, não é preciso concordar em gênero e número com a visão arcandiana. O diretor, às vezes, é exagerado e intransigente em sua postura ofensiva à modernidade. Os tempos em que vivemos não são de todo ruins e a crítica praticada por ele acaba se assemelhando a uma metralhadora giratória, que não poupa quase ninguém. Em algumas passagens, portanto, falta uma certa modalização em seu discurso, por mais que pareça um contrassenso falar aqui em medição de palavras. Do contrário, A era da inocência não tornar-se-ia um retrato tão rancoroso da modernidade sonsa em que estamos submersos, haja vista o fato de sempre existir uma fresta de reversibilidade nesse quadro de caos às avessas. E isso causa a percepção de que, não fosse o ódio hiperbólico de seu realizador, estaríamos diante de uma grande obra. Ainda assim, são inegáveis as ressonâncias reflexivas de sua abordagem, que nos trazem a ideia de que autenticidade e o abandono do excesso de meios termos no trato com o outro são muito salutares para qualquer tipo de relacionamento.

Antes de mais nada, Jean-Marc é um sonhador, no sentido mais escapista do termo. Se a realidade não lhe oferece o que ele mais deseja – leia-se reconhecimento e mulheres, muitas mulheres – o jeito é se refugiar nos delírio de sua imaginação que nunca dorme, e chega a invadir o espaço de seu cotidiano inócuo. De fato, a realidade não é nada fácil e se revela bem pouco atraente a maior parte do tempo, mas, como disse Woody Allen em um de seus vários insights de humor genial, ainda é o único lugar em se pode comer um bom bife. Um prazer simples, mas do qual o protagonista não se dá mais conta – até porque sua esposa, antes de deixá-lo a ver navios, insiste em lhe oferecer apenas pratos congelados. Em todo caso, vale conferir o desfecho da trilogia, para quem acompanhou os anteriores, a fim de constatar que o melhor que Arcand tem a oferecer aqui é a sua disposição em mandar a correção política às favas.

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