Taxi driver: na estrada com um misantropo


Festejados como uma das mais prolíficas décadas do século XX para o cinema, os anos 70 contêm, entre outros títulos, o petardo dramático intitulado Taxi driver (idem, 1976). Sob a batuta de um Martin Scorsese ainda balzaquiano, Robert DeNiro é a encarnação da fúria sem balizas que escoa o inconformismo e o descolamento do mundo com frases bárbaras, ora no bom, ora no mau sentido. Ele dá vida a Travis Bickle, um jovem veterano do Vietnã cuja experiência em meio a um conflito bélico gerou uma intensa distopia em sua mentalidade. Incapaz de travar amizade com quem quer que seja, ele prefere o vazio da estrada e se oferece como taxista de uma pequena cooperativa, e deixa claro que pode trabalhar pela máxima quantidade de horas necessária. Sua idade cronológica é de pouco mais de 20 anos, mas suas atitudes e reflexões parecem vindas de alguém que já experimentou muitos horrores e escancara o seu descrédito na raça humana.

Assim, nosso protagonista se torna um motorista de táxi, como o subtítulo brasileiro redundante – que jamais pegou – e entre em contato direto com a selva gélida das ruas de uma metrópole chuvosa e seu vaivém de transeuntes. Sob uma das garoas que molham a cidade, ele reflete e demonstra seu desejo de que, um dia, venha uma chuva de verdade para lavar a ralé que habita as ruas, em suas próprias palavras. Essa é uma das frases mais lembradas de todo o filme, ao lado da também clássica “Are you talking with me?” (Você está falando comigo?, porque ninguém é obrigado a saber inglês...), e pontua a ferocidade que caracteriza Travis, uma estupenda oportunidade de voo solo para DeNiro, certamente um dos maiores atores que a seara cinematográfica já produziu. Seu desempenho é antológico em todos os sentidos, representando a entrega arrepiante à interpretação de um sujeito cuja misantropia atinge um nível extremo, culminando com uma reviravolta e tanto depois da metade da narrativa. Presente em todas as cenas, ele sintetiza a agonia do não-pertencimento em uma economia interpretativa exemplar.

Infelizmente, a Academia se limitou a indicá-lo na categoria de melhor ator, preferindo entregar o prêmio a Peter Finch, que concorria por Rede de intrigas (Network, 1976). Realmente, foi uma pena. A vitória de DeNiro seria um acerto memorável. Por mais que não fiquem claras ou que não se concorde inteiramente com as razões e a linha de pensamento de Travis, é possível extrair algumas verdades do personagem. Em sua intensidade, ele lança luz sobre pequenas vilezas do cotidiano e desfaz as concessões tradicionais ou os protocolos, muitos dos quais estão inscritos no rótulo da “boa educação” (as aspas, aqui, são facultativas). Muitas vezes, ele é assustador, mas o degelo de seu coração parece chegar com os encontros com Betsy (Cybill Sheperd), a assistente do comitê de campanha de um candidato a senador. Com ela, Travis demostra toda a sua canhestrice no trato com o sexo oposto, chegando ao cúmulo de levar a garota para um cinema pornô e achar sua atitude a coisa mais natural do mundo. Eis mais um forte índice do alto grau de deslocamento e de dificuldade de relacionamento apresentado pelo protagonista. Entretanto, o contato com aquela jovem é uma das centelhas de sentimento doce que ainda corre em suas veias infartadas. Centelhas que são novamente adormecidas depois desse episódio de encontro malfadado.



Scorsese praticamente esculpiu Taxi driver. O filme é uma explosão de violência verbal e física que rompe, em boa parte, com a cartilha mais clássica hollywoodiana, que vinha expirando ano após ano desde a reta final da década anterior. O diretor acabou se filiando a uma tradição inquieta, cuja pulsão para o retrato do desajuste resultou em obras de timbre viril e fustigante, como Sem destino (Easy rider, 1969), um precursor desse estilo violento. A sua firmeza atrás das câmaras se soma ao grande talento de Paul Schrader na escrita do roteiro, coalhado de reflexões potentes que vieram a ser emitidas por um homem que, ao olhar alheio, pode ser concebido como um pária da sociedade. O roteirista não economiza em antífrases, agressividade e furor, tornando Travis um ser limítrofe entre a consciência individual sobre o mundo e um misantropo entregue à estrada, que lhe serve de catalisadora de desvarios. Schrader ainda selaria outras parcerias com Scorsese, entre as quais está Touro indomável (Raging bull, 1980), também protagonizado por DeNiro. Fiéis a uma gramática visceral, a dupla fez de Taxi driver um êxito admirável, a começar pelo realismo e pela crueza de seu retrato.

O filme cresce ainda mais com a entrada de uma Jodie Foster ainda adolescente, na pele de uma prostituta que, se não é totalmente capaz de despertar a paixão do taxista, traz-lhe a motivação para a busca pela saciar uma sede intensa de colocar em prática a sua própria justiça. É basicamente por causa dela que ele enfrenta seu cafetão, que atende pelo codinome Sport (Harvey Keitel, impecável). O que se sobressai, na verdade, é uma forte amizade entre Travis e a garota, alguém tão dissoluto quanto ele. Com o sentimento de identificação pairando sobre o protagonista, suas ações violentas e intempestivas parecem justificáveis, como se ambos pudessem ser a efígie de uma mesma moeda. Foster dava seus primeiros passos como Iris, e já demonstrava ser uma atriz sensacional, segurando o rojão de uma personagem tão contundente com tão pouca idade. Até hoje, seu desempenho é lembrado e celebrado. Com toda o mérito, diga-se de passagem. Na caminhada rumo à sua conclusão, Taxi driver chega a um epílogo sanguinolento, e só perde um pouco de sua força na sequência final, bastante dispensável. Todavia, não é nada que ameace a qualidade e a grande força de um dos mais poderosos e veementes olhares sobre a paranoia de seu e de nosso tempo. E o recado está dado desde o primeiro fotograma: este é um convite a cair na estrada com um misantropo.

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