O porto, uma adorável fábula dotada de humanismo


Marcel Marx (André Wilms) é um engraxate de vida pacata que, no passado, era um escritor boêmio. Atualmente, ele vive na cidade portuária de Le Havre com a esposa Arletty (Kati Outinen) e tem nela a pessoa mais importante de sua vida. O lugar não se parece muito com a imagem prototípica que se tem da França, com suas casas modestas seus habitantes de biotipos distantes do padrão europeu, em sua maioria. Perto de sua casa, chega um contêiner com vários imigrantes africanos, entre os quais está Idrissa (Blondin Miguel), um garoto que se perde da família e procura refúgio em outro lugar. Ele quer chegar até seu tio, em Londres, mas acaba perdido no meio do caminho e conhece Marcel por acaso. Esse é o enredo básico de O porto (Le Havre, 2011), trabalho recente de Aki Kaurismäki, um dos mais celebrados diretores finlandeses, aqui filmando em língua francesa pela segunda vez, a exemplo do que fizera em La vie de Bohème (idem, 1991), em que também trabalhou com Wilms.

Desde o princípio, o que chama a atenção em O porto é o farol de otimismo que ilumina o filme, o que o torna um tanto diferente das obras anteriores do realizador, sempre muito introspectivas e graves, como é o caso de A garota da fábrica de caixas de fósforos (Tulitikkutehtaan tyttö, 1990) e Luzes na escuridão (Laitakaupungin Valot, 2006). Ambos são dramas profundos, com poucas reviravoltas e personagens em estado de grande tristeza. Perto deles, O porto é muito mais solar e até bem-humorado, evidenciando um lado do diretor que parecia improvável até então. Por outro lado, o humanismo e a sensibilidade sempre estiveram presentes em seus filmes, e aqui não é diferente. Os dois sentimentos se manifestam principalmente quando Marcel decide ajudar Idrissa a encontrar sua família, e o faz não somente por um acurado senso de justiça, mas também porque vê nisso uma chance de exercitar seu gosto por aventura, tendo de novo a sensação de viver uma grande história. Paralelamente, sua esposa adoece, e ele se divide entre os cuidados com o garoto e as visitas ao hospital para acompanhá-la, até o dia em que ela é desenganada e lhe pede que não vá mais vê-la, pois não quer parecer feia para ele.

É então que, aos poucos, todos ao redor de Marcel vão se mobilizando para auxiliá-lo com a mulher e o menino, em claras demonstrações de solidariedade genuína. Com isso, Kaurismâki apresenta pessoas em quem se pode confiar, indo na contramão do individualismo preocupante que tomou conta de boa parte da humanidade nos últimos tempos. E essa aposta em sentimentos e atitudes de bondade e gentileza dá contornos de fábula a O porto, levando o público a se perguntar até onde uma história como essa ainda encontra respaldo para suceder na realidade. Ali, todos se ajudam e conhecem de perto os problemas um do outro. Marcel, por sua vez, vive em sua nova condição, exilado voluntariamente naquela cidade, por conta da possibilidade que tem de servir melhor as pessoas e de estar mais perto delas. É esse desejo que o leva a enfrentar as circunstâncias adversas que envolvem sua ajuda a Idrissa, como escondê-lo de um inicialmente implacável inspetor, o canhestro Monet (Jean-Pierre Daroussin).



Aliás, os nomes dos personagens não são obra do acaso ou simplesmente uma preferência particular do diretor, mas representam visões de mundo distintas condensadas neles mesmos. Enquanto Marcel alude ao teórico do proletariado e da mais-valia, Monet reporta ao sociólogo nascido na cidade que dá o título original do filme, homônimo do pintor impressionista. Durante boa parte da história, o inspetor é a pedra no sapato de Idrissa, que precisa correr de um lado para outro para não ser capturado. Mas ele também precisa driblar a marcação de um senhor que o denuncia para a Polícia, interpretado pelo veterano Jean-Pierre Léaud. O personagem não tem sequer um nome, e aparece por poucos minutos em cena, sendo uma participação afetiva do ator no filme. Há anos, aliás, ele é presença bissexta nas películas, sendo sempre benvinda qualquer aparição sua. Ainda que seja na pele de alguém tão detestável, já que o espectador quase inevitavelmente se afeiçoa a Idrissa logo nos primeiros minutos do filme. Com isso, esse homem que insiste em entregá-lo às autoridades ganha a sua antipatia. Sua rejeição aos imigrantes fica clara na primeira cena do filme, que o traz denunciando um outro rapaz, que acaba conseguindo escapar do cerco policial.

O porto é eminentemente uma charge audiovisual, apostando em personagens que apresentam suas pequenas mazelas e são instrumentos de apresentação da crença em valores basais para os seres humanos que andam soterrados por preocupações desse mundo. Kaurismäki mescla ironia e denotação com diligência, e oferece um filme simples e emocionante, com a sua habitual economia narrativa e sua direção de atores minimalista, uma herança mais do que comentada de Robert Bresson, que concebia seus intérpretes como vetores de uma história muito maior que estava a ser contada. É por isso que as atuações soam um tanto teatralizadas, o que não é uma razão para considerar ninguém mau ator: é apenas uma forma diferente de olhar para os personagens e para quem d vida a eles. Esse é um dos traços marcantes da obra do diretor, além do uso deliberado de cores frias e vibrantes, fundamentais para a composição de planos interessantíssimos e um tanto surreais, remetendo, guardadas as devidas proporções, à policromia passional almodovariana. Com efeito, houve quem dissesse que O porto apresentasse tintas paródicas, uma verdade comprovável depois de uma sessão do filme, que evoca, entre outras coisas, a fé na vida e na disposição do outro em oferecer e conceder ajuda.

O diretor coloca a Lei (com letra maiúscula mesmo, por sua acepção como instituição) contra a parede, simbolizando-a com o inspetor que, a certa altura do filme, identifica-se tanto com o objeto de sua perseguição que é capaz de fazer algo por ele, exatamente como Gerd (Ulrich Mühe) de A vida dos outros (Das Leben der Anderen, 2006) em sua progressiva simpatia pelos artistas que deveria vigiar. Com isso, desmonta a carapaça que envolvia o personagem lá pelas tantas, e extrai dele um delicioso senso de humanidade, como quem demonstra crer verdadeiramente no milagre. O milagre também se manifesta na vida de Arletty, cuja condição física é transmutada inexplicavelmente: simplesmente acontece e é uma bênção benvinda a ela e ao marido. Kaurismäki nunca apresentara um otimismo tão marcante como aqui, o que corrobora a sua versatilidade como realizador e sua capacidade de mostrar diferentes olhares sobre a natureza humana a cada novo trabalho. Já fazia tempos que ele tinha em mente uma história sobre refugiados em uma cidade portuária, e chegou a pensar em ambientá-la na Espanha, na Grécia ou na Itália. Entretanto, foi em suas andanças por Le Havre que ele encontrou o que mais desejava para temperar sua saga simples de cooperação mútua: blues, soul e rock’n roll, que surgem com uma das tramas paralelas que converge para o protagonista quando ele tem uma bela ideia para ajudar Idrissa a chegar ao seu destino, e que também pode aquecer o coração do público de um jeito todo especial.

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