As maravilhas de um roteiro bem escrito em Pulp fiction


Narradas fora de ordem cronológica, as histórias paralelas de Pulp fiction (idem, 1994), cujo subtítulo brasileiro é absolutamente dispensável, apresentam, cada uma, o seu charme e a sua capacidade de interessar. Juntas, elas compõem o segundo filme de Quentin Tarantino, cinquentão nascido no Tennessee, e respondem pela veracidade da afirmação de que se trata de um diretor talentoso e inventivo. Personagens cativantes em seus defeitos e descaminhos desfilam pela tela com desenvoltura incrível, entre eles a dupla que abre o longa, interpretada por Amanda Plummer e Tim Roth, que planeja mais um dos seus assaltos mirabolantes a uma lanchonete. A conversa entre os dois, um tanto improvisada, denota o que é a tônica de todo o filme: os diálogos. Todas as tramas versam sobre violência e apontam para um universo caótico, em que as armas e os gritos dão o tom de perseguições desenfreadas e pequenos “serviços” que devem ser executados por alguns subalternos descolados. A cena de abertura é a apenas um aperitivo das mais de duas horas de filme, que transcorrem com uma fluidez admirável.

À armação em tom nonsense de Pumpkin (Roth) e Honey Bunny (Plummer) se segue uma exibição de créditos pontuada por uma trilha sonora super cool, escolhida com muita propriedade pelo diretor, e que se divide em duas músicas até que todos os dados relativos ao filme apareçam. Então, somos apresentados à dupla mais interessante de todo o filme: Jules (Samuel L. Jackson) e Vincent (John Travolta), que dominam quase todas as cenas depois que aparecem. Eles têm de fazer uma cobrança em nome de um chefe que foi traído, e essa desforra tem desdobramentos sangrentos. O mesmo Vincent precisa, em outro momento, fazer companhia a Mia Wallace (Uma Thurman), a mulher do dito perigoso Marcellus (Ving Rhames), e o encontro dos dois rende uma das cenas mais icônicas do filme, bem como da história recente do cinema: atendendo aos apelos dela, Vincent sobe na pista de dança e ambos começam uma coreografia muito peculiar, que encanta e conquista pelo que têm de simples e inusitada. Não há nada de realmente relevante na sequência; ela deve apenas ser sentida, como se o espectador pudesse embarcar no delírio de movimento dos dois.

Na verdade, Pulp fiction é antológico pelo seu conjunto, e comprova que o cruzamento de referências da cultura pop com uma atmosfera descolada pode render um grande filme. Tarantino escolheu enveredar pela senda do deboche em várias passagens, e conseguiu conquistar público e crítica, fazendo desse um de seus trabalhos mais cultuados. Há quem diga que ele até hoje não se superou. A consideração tem a sua grande cota de veracidade, principalmente se se pensa ao fraco À prova de morte (Death proof, 2007), em que sua prolixidade se revelou enfadonha e pouco proveitosa. O sucesso de Pulp fiction foi tanto que não somente as bilheterias responderam com um resultado satisfatório, mas também a crítica, que premiou o longa por onde ele passou. Cannes, por exemplo, concedeu a Palma de Ouro de melhor filme, e o Oscar de melhor roteiro original também. De fato, o roteiro é o ponto forte do filme, que exibe falas banais, as quais se tornam extraordinárias na boca dos personagens. Jules e Vincent, por exemplo, discutem acerca das variedades do Big Mac pelo mundo. É uma das cenas de correria dentro do carro, e o incidente que a encerra é um dos toques de bizarrice da história.



Outro grande mérito do realizador foi ter ressuscitado as carreiras de Travolta e Turman, que andavam mal das pernas antes de terem sido chamados para seus respectivos personagens. Eles são o que há de mais carismático dentre todas as histórias apresentadas, e a tal cena da dancinha foi relida por ambos em Be cool – O outro nome do jogo (Be cool, 2004), numa clara citação ao primeiro encontro dos dois em cena. O porém é o pouco tempo da atriz em cena: depois da sequência em que ela apronta das suas com Vincent e o leva ao extremo de lhe aplicar uma injeção de adrenalina, não aparece mais até o final. Aliás, o cara que ajuda Vincent com a tal injeção para Mia é fisicamente parecido com um querido amigo meu (uma simples informação aleatória)... e a tal cena é uma das mais mencionadas em análises de especialistas em cinema. Também cumpre ressaltar o ótimo desempenho de Jackson, um ator com um currículo cada vez mais extenso e que faz de seu Jules uma figura cativante. Particularmente, não gosto do ator, mas admito que ele me agradou bastante aqui. E a sua parceria com Travolta também é uma das melhores coisas de Pulp fiction.

Ainda há espaço para um inspirado Bruce Willis, que dá vida a um pugilista pago para perder uma luta e que se envolve em uma acelerada corrida contra o tempo para salvar a sua própria vida, em mais uma das boas sacadas propostas pelo diretor. O público tem diante de si mais uma dose cavalar de violência, somada a um teor de humor negro que conquista os fãs mais entusiásticos da obra. De longe, o papel do boxeador foi um dos acertos da carreira do ator, que anda colecionando bobagens nos últimos anos. E o próprio Tarantino dá expediente diante das câmeras, como um homem que ajuda Jules e Vincent a se livrarem da encrenca em que se meteram depois do tal acontecimento bizarro e não planejado no carro na tal cena em que os personagens discutem banalidades. Ele divide a cena com ninguém menos que Harvey Kietel, cujo papel foi escrito especialmente para ele e representa a sua segunda colaboração consecutiva com o diretor, iniciada em Cães de aluguel (Reservoir dogs, 1992). Trata-se de um personagem pequeno, mas de função importante na desenrolar de uma das histórias, por ajudar a limpar a barra da dupla um tanto aparvalhada. O próprio Tarantino declarou depois que a razão de ser do personagem era Keitel. E, mesmo com o pouco tempo de que dispõe em cena, o ator faz misérias interpretativas. Um prato cheio para fãs de bons desempenhos.

O título do filme tem uma justificativa. Ele faz referência direta a um tipo de publicação muito popular durante boa parte do século XX, cuja principal característica era justamente a violência. Esse detalhe chega a ser explicado em uma epígrafe do filme, para depois surgir a cena que, a depender do ponto de vista, pode ser considerada o prólogo ou o epílogo da obra. O resumo de tudo é a constatação de um Tarantino inspirado, que soube tirar grande proveito de sua mente criativa, alimentada por anos de exposição a filmes de toda sorte, do tempo em que ele trabalhava como atendente de uma videolocadora, um episódio de sua biografia sempre citado. Aqui, ele conseguiu casar uma trilha sonora muito bacana com atuações inesquecíveis e personagens que caem como luvas para seus intérpretes, sem necessariamente entregar personagens arquetípicos para nenhum dos atores. Assim, brindou a plateia com um dos grandes exemplares da vindima proveitosa da década de 90, uma teia genial de histórias mirabolantes.

8.5/10

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