Cidade dos sonhos e o radicalismo metalinguístico e onírico




AVISO: O texto a seguir está organizado de modo distinto do qual foi escrito originalmente, com exceção da epígrafe. Ele pode ser lido em qualquer ordem, mas, para quem preferir seguir a ordem inicialmente pensada, basta observar os números colocados ao fim de cada parágrafo.

Sínquise, do grego sýnchysis “confusão”, “mistura”, na língua portuguesa, é o nome pelo qual se chama a figura de linguagem em que os termos da oração são deslocados de maneira violenta, o que produz a confusão artística das palavras.

Desmemoriada, Rita precisa de ajuda. Depende da ótima vontade de Betty para reencontrar seu passado. Belo noir esse que se nos apresenta aqui: segredos perdidos, lindas mulheres, duplicidade e dubiedade. Aonde vamos parar? Lembremo-nos: os sonhos flexibilizam fronteiras e restrições, chegando a removê-las. Estamos em um sonho? A pergunta aflige, perturba, inquieta. Ela não se cala, e prosseguimos. Tantos outros elementos vão surgindo, como um criminoso desastrado que vitima pessoas além da conta, no afã de concretizar uma missão que lhe foi confiada. Um estranho cowboy ameaçador e um diretor sob pressão para fazer como lhe é dito, e não como sua liberdade criativa o levaria a fazer. Não importa a criatividade: é preciso ser vendável. As ameaças o contrário se for feito vêm. Melhor será cumprir as ordens. Adam (Justin Theroux), o cineasta, não tem escolha. Aí está sua interdição e sua fonte de angústia. A cidade dos sonhos de que Lynch nos fala é cruel, e sonhar um sonho nela só é possível se este for também o sonho de quem a sustenta. Betty está nos sonhos dos grandes executivos. Ela é uma ótima atriz. Nos sonhos, todos podemos ser excelentes. Sonhar é se encontrar com vontades e aspirações cuja palpabilidade pode ainda não existir. É trazer o céu para a terra. É ir do mar ao ar sem precisar respirar ou caminhar. Estamos sonhando o sonho de Betty ou de Lynch? O sonho é sonho. Precisa ser explicado? As perguntas se superpõem, e a busca pelas respostas, por si mesma, já é um grande desafio. (3)

Tudo aquilo que parecia tão ordeiro no início da caminhada de Cidade dos sonhos vai se revelando uma experiência acidentada, longa e capaz de tirar tudo do lugar. Cada elemento disposto no filme compõe uma alegoria algo fantasmagórica, que subverte perspectivas e desconcerta o espectador o tempo todo, como as falas e as atitudes de um companheiro bipolar. Lynch faz, desfaz e refaz, não necessariamente nessa ordem. Falar em ordem, aliás, chega a ser uma piada dentro do contexto elaborado pelo diretor. Tudo vibra, pulsa e ecoa segundo a condução esquizofrênica – no melhor sentido do termo – do maestro Lynch, que lida com suas marionetes movendo as cordas que as prendem com vigor e destreza, dominando a linguagem do meio que elegeu para contar suas histórias. Nota-se que ele pratica cinema de autor, desconstruindo o óbvio e revestindo-o de uma roupagem extraordinária, falando de máscaras, idealizações e castelos de cartas que podemos erguer para a imposição de nossos desejos. Cabem teorias a Cidade dos sonhos, mas cabe também a atenta observação atônita de quem está diante de um dos cantos de rebeldia, desajuste e pujança audiovisual mais hipnóticos da história do celuloide. (7)

Uma vez tendo compreendido o conceito de sínquise, torna-se mais “fácil” adentrar os meandros desafiadores de Cidade dos sonhos (Mulholand drive, 2001), um dos trabalhos mais provocativos de David Lynch. O filme sucede o convencional e comportado História real (Straight story, 1999), e se revela, pouco a pouco, uma experiência radical de transposição da ordem natural do discurso, tanto linguístico quanto cinematográfico. É exatamente por conta dessa violenta alteração, tal qual o ocorre na figura da sínquise, que o filme sufoca, encanta e hipnotiza o espectador, que não resiste à tentação de elaborar teorias que auxiliem o seu entendimento, a exemplo de um leitor que tenta reorganizar os termos de uma frase que se encontra construída por meio da estratégia comentada na epígrafe que abre este texto. De fato, há quem diga caberem várias chaves de leitura para o filme, o que já motivou textos e comentários das mais diversas naturezas e teores. (1)

Com Cidade dos sonhos, Lynch critica e espezinha Hollywood, como quem conhece bem seus mecanismos e está em totais condições de falar mal exatamente por isso. Outrossim, mergulha sua câmera em uma alma atormentada, em uma mulher que é personagem de si mesma. É bom brincar de ser outra pessoa. Ser quem se é também é um fardo dificílimo de carregar. E se pudéssemos ser outros? Só por uma noite de sonho, que fosse... O despertar traria a (dura? complexa? trivial?) realidade novamente. Então, sonhemos. A abundância do substantivo, presente inclusive no título brasileiro do filme, é a maior pista para o seu entendimento. Mas ele pode ser apreciado mesmo quando não se entende. Todos justificamos nossos gostos objetivamente? Nem sempre é possível explicar o porquê de gostarmos de algo ou alguém. Entregamo-nos ao prazer de gostar. (5)




Malgrado essa abundância de opiniões e tentativas de decifração, Lynch nos oferece, antes de mais nada, um maravilhoso exercício de fruição estética e filosófica, que se apoia no desempenho formidável de Naomi Watts, intérprete de Betty, uma atriz que chega à indústria de sonhos de Hollywood disposta a galgar degraus que a transportem à estratosfera do reconhecimento e do estrelato. O caminho, porém, é acidentado. As surpresas, múltiplas. Tudo parece um filme convencional até certo ponto, quando deixa de ser (ou parecer). Definitivamente, não estamos diante de uma obra comum, que se entrega de bandeja a quem a contempla. E não basta contemplá-la. Não há como se reservar apenas a contemplá-la. Cidade dos sonhos nos arrasta, como um sono profundo no qual se revelam imagens que não estão sob o nosso controle consciente. Revestida de motivação e intrepidez, Betty conhece Rita (Laura Harring): perdida, desesperada, em fuga. Há algo de obscuro envolvendo essa(s) mulher(es). O convite está feito: vamos investigar. O convite é irresistível. Venhamos e prossigamos em descobrir o que se descortina e se desdobra por entre as dobraduras pensadas e repensadas por Lynch – o roteiro do filme é uma certa adaptação de outro que seria para uma série, não aprovada. Sensação de dissabor pela rejeição? Associações são válidas, a verdade é de cada um e não é de ninguém. (2)

As elocubrações constantes do longa, por sua configuração justaposta, abrem caminho para a filiação a duas perspectivas antagônicas: há quem acolha e há quem repila a intensa manifestação de desestabilidade proposta pelo diretor. Quem responde por essas linhas expressa sutilmente (?!) sua acolhida a essa proposta. E seu contentamento com uma obra catártica, que fala de abismos e de tentativas de reorganização da realidade ao bel-prazer de quem a vê. E o que é a realidade senão o que nós vemos? O real pode ser acessado com uma simples chave azul ou ela é apenas uma bela metáfora para a abertura de portas e janelas para mais questionamentos? Aqui jaz um segredo, dizem as circunstâncias. Um erro foi cometido e não há como voltar atrás. O erro está no plano real, não é um sonho do qual se pode simplesmente acordar. E a irreversibilidade devora a alma de quem o cometeu. (6)

Se a sínquise pudesse ser ilustrada por um filme, Cidade dos sonhos cumpriria esse papel com vera eficiência. Pode-se não estar diante do filme mais intrincado já concebido pelo cinema, mas, decerto, esse é um dos mais labirínticos. O que parece aleatório ou gratuito se revela potencialmente esclarecedor, ao passo que aquilo que parecia indicar um rumo leva a estar à deriva. O filme convida ao devaneio, à digressão. Tal qual um conto de Clarice Lispector, é atravessado e se permite atravessar por uma vasta gama de ilações, que dependem e decorrem do gosto e da inclinação de seu espectador. O fluxo de consciência está ali, presente e desafiador. Invasivo, a ponto de não se permitir separar do que está sendo contado e mostrado. Estamos diante de um filme repleto de imagens emblemáticas e de figuras provocativas, que apresentam o melhor do estilo de um diretor que passeia por desejos e construções arquitetônicas elaboradas pela mente de uma mulher corroída pelo arrependimento e pelo remorso. A pedra foi colocada. A pedra não pode mais ser removida. A pedra é tão forte quanto a morte. E a morte, naturalmente falando, é irreversível. (4)


10/10

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