Dissonâncias transformadoras do mundo narradas em Um método perigoso



O cinema de David Cronenberg traz consigo a costumeira correlação com elementos surreais e aterradores, que expõem um lado podre do ser humano. Exemplos que se encaixam nessa breve descrição não faltam em sua filmografia, e títulos como Mistérios e paixões (Naked lunch, 1991) e Crash – Estranhos prazeres (Crash, 1996) são logo lembrados. Todavia, em Um método perigoso (A dangerous method, 2011), o diretor decidiu um trilhar uma rota mais convencional, sem se deixar levar por desvios para os seus desvarios habituais. Na verdade, enxerga-se em seus últimos trabalhos uma tendência a uma abordagem da violência e de aspectos psicológicos profundos do ser humano, mas em um viés menos controverso. Essa nova inclinação, por assim dizer, teve início com Spider – Desafie sua mente (Spider, 2002), um de seus trabalhos menos inspirados, mas que teve o mérito de se apresentar como inaugurador de um estilo algo contido do diretor, que prosseguiu com Marcas da violência (A history of violence, 2005) e Senhores do crime (Eastern promisses, 2007).

Entre outras coisas, Um método perigoso sela a terceira parceria consecutiva entre David Cronenberg e Viggo Mortensen, que tem rendido ótimos trabalhos de ambas as partes. Aqui, o ator vive Sigmund Freud, ninguém menos que o grande nome da psicanálise, que, com suas teorias, tirou o chão da humanidade ao lado de outros pensadores que também seguiram sua corrente teórica. Apesar de ser um nome tão importante também no filme, o personagem demora um certo tempo para entrar em cena, sendo precedido por Carl Jung (Michael Fassbender). No começo do longa, ele ainda é um jovem psicanalista que se interessa e se utiliza da teoria freudiana para tratar seus pacientes, em especial Sabrina Spielrein (Keira Knightley), uma jovem que, a certa altura, servirá de elo entre os dois estudiosos, que se conhecem e se admiram mutuamente em um primeiro momento.

A grande força de Um método perigoso está nas atuações irrepreensíveis do trio central. Cada qual a seu modo, eles entregam desempenhos hipnóticos, e fazem do filme um grande achado. Surpreeendemente, diga-se de passagem, Cronenberg se filia a uma cartilha mais tradicional com esse trabalho, e deposita toda a força em Mortensen, Fassbender e Knightley, bem como nos diálogos afiados e às vezes curiosos, escritos pelas mãos de Christopher Hampton, que, por sua vez, baseou-se no livro de John Kerr, também transformado em uma peça teatral, a qual esteve um bom tempo em cartaz. Entre as inserções espirituosas do roteiro, está o diálogo entre Sabrina e Jung, em que ela diz sonhar com anjos que falam alemão, ao que ele arremata impávido: “Os anjos sempre falam em alemão”. De propósito ou não, é inevitável não se reportar a Asas do desejo (Das Himmel über Berlin, 1987), clássico de Wim Wenders que não sai da memória. Afora um ou outro diálogo como esse, Um método perigoso apresenta bastante densidade, envolvendo o espectador em uma atmosfera de mergulho no lado sombrio do ser humano.



O filme discute fetiches, medos inconscientes, mecanismos de defesa e tantos outros termos e conceitos trazidos pela teoria psicanalítica, sem que o interesse pela obra diminua um minuto sequer. O caso extraconjugal de Jung com Sabrina também tem espaço, e responde por boa parte das cenas desinibidas de Keira Knitghtley, muito à vontade com uma personagem que flerta com a loucura e se relaciona com a realidade de modo muito singular. O romance entre as duas figuras históricas já havia sido abordado no italiano Jornada da alma (Prendimi l’anima, 2002) de Roberto Faenza, que não foi tão bem recebido pela crítica, tanto dentro quanto fora de seu país de origem. Em Um método perigoso, ele se alterna na posição de elemento primordial e secundário, mas, no fundo, o filme é sobre o racha ocorrido entre Freud e Jung, a partir do momento em que suas divergências foram cavando um grande abismo entre eles. Cronenberg dedica pouco mais de uma hora e meia de filme para abordar essa temática, e se sai muito bem em sua proposta.

Boa parte do êxito alcançado por ele, como já se disse, é devido ao excelente trabalho dos protagonistas, que merece ser comentado e sempre elogiado. Mortensen, por exemplo, está caracterizado com a clássica barba de Freud, e demonstra a contenção necessária à interpretação do pai de uma corrente teórica que veio tirar o homem do seu eixo, introduzindo-o em uma crise que o envolve e o arrasta até a contemporaneidade. Fassbender, por sua vez, é a prova de um ator de talento crescente, que vem oferecendo desempenhos dignos de nota a cada nova produção em cujos créditos aparece. Ele ainda é um ator a se descoberto pelo grande público, mas já acumula trabalhos importantes na carreira, como 300 (idem, 2006) e Bastardos inglórios (Inglorious basterds, 2009), em que pôde apresentar um pouco de seu vasto estofo dramático. Sua dobradinha com o Freud de Mortensen funciona plenamente, e permite afirmar que Cronenberg acertou em cheio a escalá-lo para o elenco. Já Knightley caminha no fio da navalha com sua Sabrina e, felizmente, consegue se equilibrar sobre ele a maior parte do tempo, exibindo uma performance madura, como havia demonstrado antes somente em Desejo e reparação (Atonement, 2007). Talvez seja dela o personagem mais difícil do filme, mas a atriz é capaz de dar conta do desafio com poucas escorregadelas.

Há muitos outros aspectos que fazem de Um método perigoso um filme imperdível, como a parte técnica, especialmente no que diz respeito à trilha sonora instrumental e a maravilhosa fotografia clicada por Peter Suschitzky, que confere uma coloração em tons sóbrios aos ambientes e, muitas vezes, amplifica a sensação de claustrofobia no público, especialmente as que envolvem os surtos de Sabrina. O longa também vale pela presença de Vincent Cassel, um coadjuvante de luxo que insere novas pitadas de humor ferino à narrativa, como seu personagem irreverente que contribui para uma guinada importante no pensamento e na carreira de Jung. Através do contato com Otto Sander (Cassel), Jung começa a desvencilhar sua trajetória da de Freud, e vai questionando os métodos de seu mentor para dar início às suas próprias convenções. Com tantas qualidades, uma sessão de Um método perigoso é mais que recomendável e, ainda que filmado de maneira clássica, o filme consegue enredar o espectador com sua atmosfera algo sombria e com as interpretações e os diálogos certeiros sobre uma área do conhecimento que veio espicaçar a existência humana irreversivelmente.

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