Full frontal e a busca por diferentes mecanismos de representação



A fusão entre ficção e realidade está no centro da discussão levantada por Steven Soderbergh em Full frontal (idem, 2002), um de seus filmes menos comentados. Aqui, encontra-se um uso muito particular do discurso metalinguístico, para apresentar uma trama cuja ação transcorre em um único dia, e que envolve sete amigos que tentam preservar os frágeis laços que os mantêm unidos em plena Los Angeles contemporânea. Partindo dessa premissa, o cineasta traz ao público personagens que interpretam personagens, compondo um jogo dialético que atravessa toda a duração da obra, cujos créditos iniciais não aparecem, apenas os do filme de que cada personagem participa, e que é repleto de citações discretamente espalhadas. O elenco é estelar, embora alguns dos nomes que figuram nos créditos tenham aparições fugidias como relâmpagos em dias de chuva de verão.

Tudo começa com uma breve descrição pessoal de cada personagem. Cada um deles, a seu tempo, discorre acerca de sua personalidade e da relação que apresenta com Gus (David Duchovny), um ator que vai dar um festa na noite que encerra a jornada que cada um percorrerá ao longo do filme. Todos, por sua vez, dão vida a outros personagens, que são papéis no filme que está sendo rodado dentro do filme. Por conta disso, Full frontal requer um certo cuidado ao ser visto, já que, a qualquer momento, sai o personagem e entra o ator que dá vida ao personagem. Sendo que, quando se tem o ator, no fundo ainda se tem um personagem, pois os atores que estão dando vida aos personagens nada mais são que personagens vividos pelos reais atores que fazem parte do elenco do filme. É verdadeiramente um raciocínio complexo esse que está por trás da obra. Em muitas passagens, o espectador está exposto ao risco de se confundir, e Soderbergh não parece estar preocupado em apresentar suas ideias e intenções com clareza. Tomando as palavras do Velho Guerreiro, o diretor está confundindo para explicar, e explicando para confundir.

Em meio às filmagens do longa-metragem que está dentro de Full frontal, conhece-se a ciranda de desencontros que envolve os intérpretes. Catherine (Julia Roberts) é uma repórter que procura devassar a vida de Nicholas (Blair Underwood), um ator renomado. Na “vida real”, trata-se de Calvin e Francesca, que vivem um momento de desentendimento quando surge uma carta anônima para Calvin, que ele insiste dizer que é de autoria de Francesca, que, por sua vez, nega peremptoriamente. Em paralelo, tem-se Carl (David Hyde Pierce) e Lee (Catherine Keener), um casal que está experimentando a infelicidade conjugal e rumando para polos opostos progressivamente. Enquanto ele se dedica a escrever para uma revista, ela se ocupa de seu emprego, que consiste em entrevistar pessoas prestes a ser despedidas, como quem prepara o terreno para a demissão. Como Catherine e Nicholas, Carl e Lee são personagens do filme dentro do filme, cujos atores se encontrarão para uma espécie de acerto de contas na festa de aniversário de Gus, que também tem um outro personagem para interpretar, o canastrão Bill. No filme de Soderbergh, as linhas fronteiriças entre atores e personagens praticamente desaparecem, levando a grandes puxadas de tapete no público.



Entretanto, o diretor se vale de um recurso bastante primário e objetivo para delimitar minimamente o curso dos acontecimentos, bem como para auxiliar a distinguir o filme de verdade do que está apenas dentro do filme, que é a fotografia difusa para as cenas que representam o cotidiano dos atores. O filme rodado por eles, diferentemente, apresenta uma imagem límpida e irretocável, que também servem de metáfora para o caos da vida real, sempre atravessada por tanas complicações, em contraposição ao cinema, que edulcora a realidade e a recria de modo harmônico, como em um sonho bom. A “sujeira” presente nas imagens dos atores também envolvem as cenas em um aspecto documental, como se ali se visse a verdade de cada ator. Numa dessas cenas cristalinas surge Brad Pitt como ele mesmo, dando palpites nas filmagens e se fazendo ouvir graças ao seu charme ao sex appeal que, invariavelmente, conferem a ele. No fundo, ele demonstra que Full frontal é uma grande brincadeira entre amigos e uma grande brincadeira com a indústria cinematográfica, tão presente na vida cotidiana de cada um que torna difícil dissociar a realidade diária de uma construção ficcional bem costurada por um diretor. Ao público, cabe estar atento a cada minuto do filme, para captar suas nuances algo cínicas e estar consciente de que muitas delas se depositarão em uma espécie de ponto cego.

Certamente, é um filme capaz de dividir opiniões. Há quem possa entender Full frontal como um mero exercício de egocentrismo de Soderbergh, e há quem possa concebê-lo como um intrincado jogo de verdade e representação. No fundo, é um filme que vai se revelando cada vez mais difícil, e que escapa dos olhos do espectador em vários momentos, como se nunca fosse possível dar conta de todas as suas camadas. Mais de uma chave de leitura pode ser dada ao filme, e ele vale a pena como uma investigação sobre os diferentes mecanismos de representação que envolvem a complexa natureza humana, sempre em trânsito. Sobre a fotografia antes comentada, ela também é uma atribuição do cineasta, que a assinou sob o pseudônimo de Peter Andrews, e rodou praticamente todo o filme no melhor estilo “câmera na mão”. As filmagens do longa, por sua vez, consumiram apenas 18 dias, e renderam um ar de vídeo caseiro a muitas sequências apresentadas, como se se apresentasse o “mundo real” como poluído e turvo. Durante o seu transcorrer, Full frontal distribui algumas outras pegadinhas e sacadas inteligentes, que confirmam o quanto Soderbergh pode ser surpreendente e provocador.

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