Philomena, a busca de uma vida com lascas de bom humor

Baseado no livro escrito pelo jornalista Martin Sixsmith, um calhamaço de 488 páginas, Philomena (idem, 2013) é a história de um segredo mantido por 50 anos que vem à tona para dar início a uma árdua busca. Quando jovem, a personagem-título se envolveu pela primeira vez com um homem e, da sua primeira relação sexual, nasceu um filho. À época, ela fazia parte de um convento e teve um breve período de convivência com o menino, chamado Anthony, que acabou entregue para adoção pelas freiras, e então não soube mais nada a respeito de seu paradeiro. O longo tempo de silêncio é justificado pela mulher, interpretada por uma sempre excelente Judi Dench, como decorrência do seu sentimento de pecaminosidade diante do que fez, tornando desconfortável a sua confissão a quem quer que fosse. Como que liberada dessa prisão mental, ela toca no assunto pela primeira vez com a filha, que logo comenta sobre a história com Martin, vivido no filme por Steve Coogan, também autor do roteiro com Jeff Pope. 


Inicialmente, ele rejeita a ideia de transformar em livro o episódio e seus desdobramentos, justificando que se trata de uma daquelas “histórias de interesse humano”, filão que está fora de sua área, além de já estar prestes a se envolver com história russa, este sim o seu objeto de escrita. Questionado pela mulher sobre o porquê de não acolhê-las, ele argumenta que são “um eufemismo para histórias sobre pessoas de cabeça fraca, vulneráveis e ignorantes para encher as páginas de jornais lidos por pessoas de cabeça fraca, vulneráveis e ignorantes”, mas não convence a mulher, que promove um encontro seu com Philomena. Aos poucos, ele passa a uma espécie de comoção por aquela senhorinha tão simpática e de senso de humor inglês e peculiar ao mesmo tempo, que vem se somar a sua complicada situação profissional – ele acabou de ser demitido – e volta atrás em sua ideia sobre histórias como aquela, e eis a primeira qualidade do filme de Stephen Frears: a química maravilhosa entre Dench e Coogan, à vontade a cada cena.

Através dos diálogos proferidos pelos personagens, o longa-metragem mostra a que veio e distribui alfinetadas certeiras contra a Igreja Católica, a grande vilã da história, além de passar pela questão da homossexualidade e do regime republicano do ex-presidente Ronald Reagan. Tudo isso sem jamais esquecer o senso de humor, como alguém que é capaz de perder o amigo, mas não perde a piada. A opção por temperar a história com ironia e comentários espertos e, por vezes, desbocados, coloca Philomena em um patamar diferente daquele ocupado por vários dramas. Onde muitos se acanhariam em fazer sorrir, este aqui insere bem-vindos alívios cômicos que dão ao enredo um misto de seriedade, leveza e frescor. É um raro prazer testemunhar Dench, uma atriz de semblante normalmente sisudo, na pele de uma mulher com um passado tão triste e capaz de tiradas tão interessantes, destinadas sobretudo a Martin, um ateu que chega a questionar sua descrença no período em que convive com ela, ainda que não demonstre abandoná-la.


Em seus enxutos 98 minutos, Philomena encontra tempo de ser road movie, já que os protagonistas rumam da Irlanda para os Estados Unidos, onde Anthony foi morar com seus pais adotivos, em busca de notícias. É quando ela tem a chance de conhecer pessoas importantes na trajetória do filho e vai se sentindo mais próxima dele como jamais tinha sido possível em décadas. Mesmo nessa fase da história, nada de choradeiras ou trilha sonora apelativa. Aliás, como em 12 anos de escravidão (12 years a slave, 2013), outro drama marcante, a música se mantém discreta ou até mesmo ausente em cenas cruciais da história, cabendo aos atores a responsabilidade de despertar a emoção do público. É mais um ponto a favor do filme, que acabou entre os nove indicados na categoria principal da edição 2014 do Oscar e, de certa forma, tornou-se representante das produções ditas menores na premiação da Academia. No olhar de alguns, pode parecer exagero, mas não lhe falta cacife para tal seleção.

Entrevistada por ocasião do lançamento do filme, a verdadeira Philomena Lee fez questão de lembrar que a sua história é a mesma de milhares de outras irlandesas que conceberam filhos fora do casamento e levados para adoção à sua revelia. Portanto, desencavar o seu passado é apontar o dedo para a Igreja Católica, entre cujos dogmas está o pagamento de penitências quando se comete um pecado, como se o sacrifício humano pudesse torná-lo limpo diante de Deus. Tal pensamento se traduziu na decisão de fazer Philomena dar à luz Anthony sem qualquer anestesia, cena relembrada pela personagem, que compartilha sua dor com o público, sob o filtro da escrita de Martin, sem traços de autocomiseração. Ainda na entrevista, ela confessa que perdeu a fé na instituição, para recuperá-la tempos depois, ainda que jamais tenha sido capaz de esquecer o filho. A julgar pela maneira como é retratada no filme, Philomena é uma companhia bastante agradável e nada amargurada, que foi capaz de oferecer perdão aos seus algozes. “Simples assim?”, questiona um perplexo Martin. “Não é simples assim. É difícil. Difícil para mim. Mas eu não quero odiar as pessoas”. Sábia decisão.

8/10

Comentários

Postagens mais visitadas