Amantes, o triunfo do coração sobre a razão

O melodrama é frequentemente dotado de uma forte carga pejorativa, o que se configura como uma grave injustiça de um público que serviu refém de tramas que, supostamente, falam do coração, mas não têm alma. Felizmente, Amantes (Two lovers, 2008) vem suprir essa lacuna. O filme de James Gray é uma ode ao amor como poucas vezes se testemunhou nocinema contemporâneo, tomado aqui como toda a produção cinematográfica das últimas duas décadas. No centro dessa história de amor, está Leonard (Joaquin Phoenix), um homem em estado de desespero. Ele começa o filme em uma tentativa de suicídio que, logo adiante, ver-se-á como não sendo a primeira. E essa sequência de abertura do filme já denota um aspecto que lhe é fundamental:a escala de cinza da sua fotografia.

Amantes se constrói basicamente por sua fotografia em tons acinzentados, que conferem uma atmosfera plúmbea à cidade de Nova York, onde se passa. Os ambientes frequentados por Leonard são sisudos, graves, condizentes com seu estado de espírito de franca desolação do personagem. Sua tentativa de suicídio, neste início, consiste em pular no mar, tendo nas mãos um dos símbolos de seu aprisionamento ao mundo dos vivos, por assim dizer: uma peça de roupa da lavanderia de seu pai, com quem ele trabalha. É de uma ironia cortante a frase que acompanha o logotipo da empresa: “Nós amamos nossos clientes”. Movido por um impulso de necessidade de colaboração com a família, talvez, Leonard emerge, sendo ajudado por um estranho que lhe permite recobrar a consciência. E saber que ele é tão necessário pela possibilidade de funcionar como um recurso humano também lhe é um fardo pesadíssimo. 

O motivo que leva Leonard a adotar uma postura tão compassiva está no fato de ele ter rompido um noivado há dois anos, por causa de uma incompatibilidade genética. Ele ainda não superou o episódio, e é daí que derivam, também, suas constantes tentativas de suicídio. Seus pais, belamente interpretados por Moni Moshonov e Isabella Rossellini, são capazes de tudo por amor ao filho, e ficam atentos à possibilidade de envolvimento entre ele e Sandra (Vinessa Shaw), a filha de um casal de amigos deles. De fato, ocorre um encantamento entre os dois, e logo se percebe que Sandra fica mais interessada, e mais rapidamente, na pessoa de Leonard. Acontece que, dias depois de uma aproximação de Sandra, ele conhece Michelle (Gwyneth Paltrow), uma vizinha a quem ele dá guarida quando ela está em discussão com o pai mau-humorado. Uma vez tendo permitido a entrada de Michelle em sua casa, Leonard também permite que ela entre em sua vida. Está formado o contraponto entre estabilidade e aventura que permeia a narrativa de Amantes. Em diversos momentos, percebe-se que este é um filme feito à moda antiga, para falar aos corações despedaçados e aos sem esperança de autorrealização no amor.

Gray, como bem disse um crítico de cinema brasileiro, testa seu domínio de câmera, arrastando o espectador para uma ambiente essencialmente imagético, e descartando praticamente todas as referências temporais que os cenários poderiam apresentar, tornando o filme atemporal não somente por conta de sua temática. A condução leve e, ao mesmo tempo intensa do realizador, imprimem ao filme um aspecto permansivo, e de reflexão profunda. Amantes não se apresenta como inovador a maior parte do tempo, o que o aproxima ainda mais de uma história corriqueira. A vida é essencialmente trivial, e o longa-metragem capta esse detalhe em seus 110 minutos com muita propriedade. A seu favor, ainda, está a coesão do elenco. Tanto no ensaio de namoro com Michelle quanto na relação mais concreta que desenvolve com Sandra, há credibilidade, e o público pode se mostrar tão cindido com as possibilidades amorosas quanto o personagem. 


Na verdade, Gray se vale também de uma estratégia dramática prototípica, e bastante eficiente: enquanto Sandra é o ar de tranquilidade que sopra suavemente sobre o rosto de Leonard, Michelle é a força intempestiva que o leva a querer alçar voos em direção a um abismo desconhecido. Muitos outros filmes já se valeram dessa premissa, mas poucos foram capazes de oferecer tanto realismo e empatia em cena. A trilha sonora é outro dos elementos que explicam a força de Amantes. Muitas árias de óperas, com seu peso dramático, acentuam a importância do drama que o protagonista está vivendo. Leonard se permite vivenciar a dor e o vazio, mas também caminha na direção de sua superação, a cada novo encontro com Sandra ou com Michelle. A propósito, a personagem foi especialmente escrita para Gwyneth Paltrow, que vem se tornando cada vez mais seletiva com suas escolhas como atriz. É de encantar sua maturidade adquirida ao longo dos anos e dos filmes, e a vitalidade, até certo limite, que ela entrega na pele de uma mulher que é uma espécie de advento da paixão, mas que também oferece fartas doses de complicação, por conta de seu envolvimento com outro parceiro e de sua inclinação às drogas. 

Raciocinando com a cabeça, Leonard não teria porque hesitar, já que Sandra representa toda a segurança que lhe é necessária. Em dado momento do filme, ela lhe diz com todas as letras que quer cuidar dele, mas não parece tão simples para Leonard simplesmente escolher estar ao seu lado. E essa hesitação deriva exatamente da abertura para o mundo que Michelle lhe oferece. Ele se identifica com aquela mulher que se sente tão insegura diante de sua condição de amante, e que se refugia nas drogas em muitos momentos para ter certeza de que há um lugar melhor que a realidade para viver. Os encontros de Leonard e Michelle, quase sempre furtivos, e as conversas que eles têm ao telefone, mesmo estando apenas de frente um para o outro das janelas de seu apartamento, assinalam o ensaio rumo à liberdade feito pelo protagonista. Aliás, também cabe ressaltar a atuação contida, na medida certa, de Joaquin Phoenix. Ele sela com Amantes sua terceira parceria com James Gray, com quem já havia filmado Caminho sem volta (The yards, 2000) e Os donos da noite (We own the night, 2007). Este último foi apontado como um sopro de renovação na seara dos dramas policiais, e ajudou a consolidar a carreira de Gray como realizador, permitindo-lhe também a incursão pelo drama mais propriamente dito. 

O resultado final de Amantes é simplesmente encantador, com uma ambientação que lhe permite a classificação como excelente. A narrativa segue com uma fluidez impressionante, graças ao roteiro bem azeitado a cargo do próprio cineasta. Seu filme traça um painel plausível da angústia de querer, e do quanto o ser humano é complexo, especialmente no que se refere ao campo amoroso. Apesar de investir pesado no drama, o filme não carrega consigo uma aura pessimista, mas reforça o tempo todo a faliblidade das relações, que podem sucumbir ao menor solavanco. Para além de qualquer referência espaço-temporal, o filme se constrói com delicadezas, gestos que trazem as verdadeiras perspectivas de seus autores e a constatação de que o amor reverbera na vida de uma pessoa, e não há como fugir da necessidade de sua concretização.

10/10

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