Um estudo sobre a amoralidade ou Antes que o diabo saiba que você está morto

Antes que o diabo saiba que você está morto (Before the devil knows you're dead, 2007) revela sua força logo em seu título, tão comprido quanto pesado. O alerta é direcionado aos irmãos protagonistas da história, encarnados por Ethan Hawke e Philip Seymour Hoffman, profundamente sintonizados cena após cena. Cada qual estacionado em um degrau diferente na escada da amoralidade, Hank (Hawke) e Andy (Hoffman) vêm se afundando em dívidas, uma ofensa às suas perspectivas hedonistas de vida. Diante da iminente bancarrota, surge um plano ousado que pode trazer de volta aos dois o padrão de vida ao qual se habituaram nos últimos anos. E a tal amoralidade chega ao seu apogeu nos lábios de Andy, que está mais acima na tal escada: a ideia é assaltar a joalheria dos seus pais, faturar com a venda das joias e depois, com o seguro, o estabelecimento pode ser reconstruído. 

Hank oscila entre o choque e a tentação com a proposta do irmão mais velho. Entretanto,  com um pouco mais de insistência de Andy, que potencializa cada palavra que sai dos seus lábios com uma retórica de alta periculosidade, ele acaba embarcando no plano. Está posto o argumento do longa de Sidney Lumet, cuja filmografia tem suas bases fincadas em personagens à volta com dilemas morais, lidando com eles de maneiras bastante subjetivas, por assim dizer. A estreia louvável desse realizador, falecido em 2011, deu-se com 12 homens e uma sentença (12 angry men, 1957), um potente filme de tribunal capaz de produzir reflexões em várias instâncias que não ficou datado mesmo com o passar de muitas décadas. Ao longo de todos esses anos, Lumet foi mantendo a coerência fílmica sem abraçar a redundância, uma virtude dos grandes artistas, não somente os do Cinema.

No caso do filme em análise, a atenção deve estar focada não somente na trama em si, mas na maneira como ela é conduzida. Roteirizada por Kelly Marsterson, então novato na função, a narrativa apresenta idas e vindas temporais que, para além de mostrar em detalhes os reais problemas enfrentados por Andy e Hank, apresentam seus respectivos pontos de vista sobre aquele estado de coisas. Isso inclui o relacionamento deles com os pais, Nanette (Rosemary Harris, a Tia May de Homem-Aranha [Spider Man, 2002]) e Charles (Alber Finney), e também com Gina (Marisa Tomei), a esposa de Hank com a qual Andy tem um caso movido exclusivamente pelo furor sexual. Esse elo entre os irmãos também deixa entrever o quanto de competição existe no meio deles, gerando, por conseguinte, inveja e trapaça. Como se trata de dois homens que não tem um compromisso estrito com a moral vigente no mundo, esses e outros sentimentos e atitudes são detalhes que podem ser manobrados com certa tranquilidade.


Deriva desses elementos conjugados a apoplexia causada por Antes que o diabo saiba que você está morto. Os laços familiares não são minimamente representativos para os irmãos, que ferem códigos básicos nessa âmbito sem experimentar grandes remorsos ou arrependimentos. Não cabe esse tipo de conduta na cartilha seguida pelos irmãos, e o filme se revela um soco no estômago a cada nova sequência, reforçando os protagonistas como anti-heróis o tempo todo. Quando o tal plano é executado, as consequências são apenas as imaginadas por Andy e Hank: de última hora, Nanette aparece na joalheria e fica na mira do assaltante encomendado pelos seus próprios filhos e, transtornada, acaba sentindo na pele a ambição desenfreada dos dois, em uma das passagens mais fortes de todo o filme. É apenas nesse instante, aliás, que os irmãos demonstram algum tipo de refração moral. Ou seria simplesmente um inconformismo por uma meta não alcançada conforme o planejado?

O longa coincidiu temporal e tematicamente com O sonho de Cassandra (Cassandra's dream, 2007) e acabaram surgindo comparações entre ambos. Para boa parte da crítica, Lumet foi mais bem-sucedido, o que é uma grande injustiça com o filme de Woody Allen, uma lufada de grande peso dramático em sua carreira de comediógrafo. Na verdade, cada um tem suas características particulares que os tornam grandes filmes, apesar de serem realmente comparáveis. Antes que o diabo saiba que você está morto acabou sendo o canto de cisne de Lumet, que soube fechar bem sua carreira demonstrando uma ótima forma. Contam a seu favor os desempenhos formidáveis de Hawke e Hoffman, à vontade em seus papéis de homens capazes de dizer e fazer as maiores atrocidades com um ar incrivelmente natural. Tudo isso contribui para que assistir ao filme, da primeira à última sequência, tenha um efeito similar ao de um murro no estômago dado sem piedade.

9/10

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