Trem mistério e os pequenos desastres do cotidiano


Os pequenos desastres do cotidiano se revelam o mote de Trem mistério (Mistery train, 1989), quarto filme do expoente indie Jim Jarmusch. Brincando com a alternância de tramas, ele oferece um novo ensaio sobre trivialidades e conquista o espectador que ama entrar em contato com tipos comuns e suas odisseias particulares dia ou noite adentro. Como ponto de partida, tem-se o meio de transporte presente no título, no qual se encontra um casal de turistas japoneses (Masatoshi Nagase e Youki Kudoh) fã de Elvis Presley que chega aos EUA dispostos a conhecerem de perto alguns locais que fizeram parte da história de vida do seu ídolo. Com um inglês um tanto rudimentar, eles se aventuram pelo país com um desejo enorme de descoberta, e gostam de fazer coisas simples, como ouvir uma boa música e interagir com as pessoas que passam pelo seu caminho. Uma vez fora do trem, eles serão os primeiros a viver uma série de pequenos eventos que congregam tópicos banais da existência.

Ao contrário do que pode parecer, contudo, o casal não é protagonista da história. Ao longo de quase duas horas de filme, eles são dois de uma meia dúzia de personagens que vão desfilando pela tela aos poucos em situações que dão margem a improvisos e despertam algumas gargalhadas ou sorrisos discretos quando menos se espera. Aliás, nada mais típico em se tratando de Jarmusch, cuja predileção por lançar luz sobre indivíduos e ambientes normalmente marginalizados. Seus filmes anteriores já davam conta de apresentar essa tendência, como Estranhos no paraíso (Stranger than paradise, 1984) e Down by law (idem, 1986), ambos espetacularmente filmados em preto e branco. Em Trem mistério, ele volta às cores, como em sua estreia, para oferecer uma obra de forte cunho autoral e pontuada por momentos que transformam o ordinário em poesia, daquelas que não trazem uma preocupação com versos rimados, apenas com uma cadência envolvente e inusitada. Nesse sentido, estamos diante de mais um exemplar irresistível de sua obra, quase tão marginalizada quanto os tipos retratados nela.

No percurso acidentado oferecido pelo filme, também conhecemos os funcionários de um hotel de quinta categoria, onde o casal se hospeda. A dupla de homens dialoga de modo hilariante, sobretudo porque boa parte de suas falas tem uma pitada de nonsense, ao qual a reação mais instintiva costuma ser a risada. Trata-se de dois negros que discute o nada, o tédio e, indiretamente, a solidão, elementos abundantes em um lugar carente de acontecimentos relevantes. O hotel, a propósito, é o verdadeiro ponto de contato entre as tramas do filme, e não o trem que aparece no começo da história. Por ali, também passa uma outra turista, vivida pela italiana Nicoletta Braschi, que vê seus planos de uma viagem inesquecível fugirem de seu controle e acaba praticamente sem dinheiro, contando com a ajuda de uma desconhecida com a qual divide um quarto nessa tal espelunca. A trama que envolve as duas é uma bela ilustração do quanto, em certas situações de adversidade, é possível contar com a gentileza de estranhos, sem nem poder retribui-la a tempo. Também há espaço para um trio de delinquentes cujos percalços derivam de suas personalidades estabanadas e, entre eles, está um sujeito interpretado por Steve Buscemi. É curioso notar a sua presença no elenco de Trem mistério, especialmente para quem o viu como o Mr. Pink de Cães de aluguel (Reservoir dogs, 1992), estreia de um certo Quentin Tarantino apenas três anos depois, e pensa que este é o primeiro assassino desastrado de sua carreira. Ele se encaixa maravilhosamente ao olhar proposto por Jarmusch, com sua queda para personagens cuja conduta caminha no tênue fio da navalha entre o escracho e a tragédia.


Esses dois polos nem tão antagônicos, aliás, são o eixo em que se apoia todo o filme, a última parte da trilogia iniciada em Estranhos no paraíso e continuada em Down by law. E os personagens transitam por Memphis, no Tennessee, um dos lugares menos óbvios da geografia estadunidense, e que diz muito sobre o distanciamento do próprio Jarmusch do fazer cinematográfico operante em Los Angeles e circunvizinhanças. O cinema do diretor precisa ir mais longe para alçar voos mais altos em termos de narrativa e potência reflexiva, sem recorrer a concepções didáticas ou esquematismos que aproximam a produção cinematográfica de um revestimento industrial e, consequentemente, isomorfista. Trem mistério abre espaço para o imprevisto, o impensado e o surreal, como na cena em que o fantasma de Elvis Presley aparece para a turista italiana, que teve uma viagem triste pelo fato de ter ido até ali buscar o corpo de seu marido, cuja morte se relaciona diretamente à trama envolvendo o personagem de Buscemi e seus dois amigos. Tudo está muito bem amarrado pelo roteiro escrito pelo próprio realizador, que ainda oferece uma trilha sonora deliciosa, que gruda nos ouvidos e harmoniza belamente com as paisagens apresentadas e com o estado de espírito de seus protagonistas/coadjuvantes.

Atualmente, é perfeitamente notório que a influência de Jarmusch se estende sobre grande parte dos cineastas independentes, e alguns filmes chegam a se parecer com decalques de sua maneira de construir histórias. Não cabe citar aqui quais seriam eles. Vale mais a pena deixar por conta do público descobrir esses diálogos e formular sozinho as suas conexões particulares. E, mesmo entre os diretores mais celebrados pelo grande público, é possível notar essa influência, vide o Quentin Tarantino (novamente ele) de Pulp fiction (idem, 1994), que exibe uma estrutura narrativa muito similar a esse aqui. A obra jarmuschiana pode ser uma atraente porta de entrada para espetáculos minimalistas, que escancaram um olhar lacônico sobre pessoas envolvidas com situações corriqueiras de laivos poéticos, como já se disse. Ele também sabe ser satírico, e questiona o modo de vida típico de seu país com maestria, elaborando caricaturas de alguns aspectos bizarros da existência, sem lançar mão de um arcabouço filosófico hermético. Pelo contrário: os filmes de Jarmusch costumam ser bastante simples e diretos em suas intenções e resultados, e demonstram um grande poder de atração por trazer pessoas e eventos com os quais se consegue identificar facilmente. E surgem muitos deles em Trem mistério, que ganhou um prêmio de contribuição artística em Cannes. É por causa de cineastas como ele que o cinema, mesmo com os assaltos sistemáticos de certos produtores sedentos de divisas alcançáveis com tramas mastigadas, ainda tem espaço para se mostrar como um reduto de transformação do banal em extraordinário.

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