Aqui é o meu lugar e a procura por um leme em vida


Jornadas existenciais são uma constante no cinema de várias épocas. Frequentemente, as produções que versam sobre o tema se mostram bem-sucedidas, e esse também é o caso de Aqui é o meu lugar (This must be the place, 2011), primeira incursão do italiano Paolo Sorrentino em um filme falado em uma língua que lhe é estrangeira. O realizador vem galgando degraus na escada do prestígio junto a Hollywood depois de dois trabalhos elogiados – As consequências do amor (Le conseguenze dell’amore, 2004), sua estreia, e O divo (Il divo, 2008) – e, em sua chegada à famigerada indústria do cinema, ele recrutou Sean Penn para o papel principal de seu road movie de redescoberta. Cheyenne é um astro do rock de visual um tanto extravagante que conheceu a glória sobre os palcos em anos precedentes, mas hoje experimenta uma vida distante dos holofotes – o que, a certa altura, parece se mostrar uma escolha voltuntária da sua parte.

Alguns elementos cênicos dão conta de mostrar que o protagonista optou por um certo ostracismo, sobretudo a casa onde ele mora com Jane (Frances McDormand), sua esposa e empresária. O lugar tem uma enorme piscina que permanece sempre vazia, na qual ele prefere jogar com Jane – trata-se de uma metáfora para sua própria vida, carente de um propósito e de um eixo de sustentação. Chama a atenção, desde o início, o excelente trabalho de composição de Penn para o músico, que se traduz não somente na aparência esdrúxula, mas também em uma envergadura vocal diferenciada, de timbre agudo e ritmo arrastado, como um efeito colateral dos anos de excessos lisérgicos e etílicos cultivados no apogeu de sua carreira. Aliás, o ator costuma ser camaleônico e criterioso na escolha dos seus personagens, e não falta exemplos que comprovam a afirmativa espalhados pela sua filmografia – basta olhar, por exemplo, para seus desempenhos em Poucas e boas (Sweet and lowdown, 1999) e Milk – A voz da igualdade (Milk, 2008). No caso de Aqui é o meu lugar, sua presença no elenco é um dos grandes acertos proporcionados por Sorrentino.

Ao longo de seu transcorrer, o filme demonstra o quanto o diretor é um estiloso contador de histórias, enxergando a humanidade por trás da fantasia do artista, que nada mais é do que uma construção inteiramente calculada, o personagem do personagem. Cheyenne adquiriu uma expressão lânguida diante da vida, e essa indisposição consigo mesmo, por assim dizer, é levemente alterada quando ele toma a decisão de cair na estrada e procurar o nazista que torturou e executou o seu pai, e que hoje se encontra em idade avançada. Então, Aqui é o meu lugar passa a mesclar música e asfalto para analisar os vácuos afetivos que permeiam o coração do músico, compondo um quadro minimalista de emoções represadas ao longo dos anos que precisam encontrar um meio de serem escoadas em algum momento. A contenção dos sentimentos e das sensações tem um limite de tempo e de volume, e Cheyenne se dá conta dessa verdade à medida que avança em sua procura que também adquire contornos metafóricos, já que encontrar o tal assassino também é conhecer parte de si mesmo e encontrar um rumo diferente para si. Em meio a essa busca, ele é acompanhado por uma jovem a quem tenta empurrar um rapaz que está louco por ela, mas a recíproca está longe de ser verdadeira. A cumplicidade entre ela e Cheyenne é notável, e seus diálogos agridoces funcionam como pitadas de reflexão sobre a natureza humana.


Com relação ao título original do longa, existem duas curiosidades interessantes a serem comentadas. Inicialmente, ele tinha sido pensado por Sam Mendes para um de seus filmes, rodado em 2009, que acabou se chamando Away we go e, no Brasil, foi batizado como Distante nós vamos e, em seguida, Por uma vida melhor. A frase também intitula uma canção do grupo Talking Heads, cujo vocalista é David Byrne, o qual chega a fazer uma participação na história interpretando a si mesmo. A música, aliás, está presente na trilha sonora do filme, em mais de uma versão inclusive, e demonstra um enorme poder de toque com seus versos sinceros e desalentados: I guess i must be having fun / The less we say about it the better. Em tradução livre, o trecho diz: Eu acho que devo estar me divertindo / Ao menos podemos dizer isso, é melhor. Esse é o espírito do filme, que demonstra o quanto Sorrentino sabe desvencilhar sentimento de pieguice e conquistar pela honestidade.

A estrutura narrativa do Aqui é o meu lugar se mostra um tanto atípica em certas passagens, evidenciando a capacidade do diretor em oferecer uma nova abordagem para um assunto que, vez por outra, volta à tona no cinema. De todos os momentos marcantes do filme, porém, o que mais se destaca é o que mostra um show de rock, cuja montagem engenhosa é um daqueles instantes embevecedores que a sétima arte é capaz de nos oferecer e que permanece longamente em nossa memória de espectador. Ainda existe espaço para um diálogo com outras produções cuja base são o reencontro de um protagonista consigo mesmo pelas estradas curvilíneas em que trafegam, sobretudo Paris, Texas (idem, 1984) e História real (The straight story, 1999). E ambos contam com a presença de Harry Dean Stanton, ator fantástico que também ganhou um papel no filme de Sorrentino, sendo uma participação afetiva que sela o tal diálogo. No mais, o filme permite a conclusão de que este é um cineasta promisor, capaz de renovar o fôlego de temáticas esgarçadas para lhes assegurar a atualidade, extraindo interpretações marcantes de seu elenco e chamando a atenção para a história a ser contada e não para si, como parece ser a intenção de alguns realizadores. Antes de mais nada, Aqui é o meu lugar flagra o homem deambulante, de afeto desastrado e à procura de sua autorreinvenção.

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