Os olhos do silêncio em O bom de chorar


O silêncio é eloquente. Ambos apenas se olham por um longo tempo, como quem não tem nada a dizer ao outro. Apenas olham. Tudo já foi dito? O que ainda resta? Ao fundo, a melodia tristonha evoca os sentimentos doloridos, atingidos, ardidos. Eis a conjuntura com que Matías Bize abre O bom de chorar (Lo bueno de llorar, 2006), mais um de seus retratos amorosos condensados. Duarante uma noite inteira, um casal (Àlex Brendemühl e Elena Corredera), que sequer chega a ser nomeado, procura podar as arestas de seu longo relacionamento. Há uma estrada em comum cujos percalços e maravilhas precisam ser lembrados. A memória a dois é cultivada diariamente, e nenhum deles parece querer se livrar dela, ainda que lembrar, muitas vezes, rime com sofrer. Cada segundo conta. Cada instante ganha uma dimensão de eternidade. É assim que os dez primeiros minutos do filme, sem um diálogo sequer, tornam-se ponteiros morosos, arrastando-se para girar completamente. Aturdidos, ansiamos pela palavra que será dita ou pelo gesto que desencadeará uma reação no outro.

A tal cena de abertura revela todo o seu impacto não somente pela duração, mas por ser uma das únicas em que vemos de muito perto os rostos dos então parceiros. A câmera se aproxima cada vez mais de ambos, enquanto a música de fundo cresce cada vez mais em volume e compõe uma atmosfera sufocante, fazendo, paradoxalmente, o silêncio dos amantes ensurdecedor. Tudo transcorre em uma única noite. Uma longa noite. Uma triste noite. Uma inesquecível noite. Uma interminável noite. Entre anáforas e catáforas, eles repisam episódios passados, apresentam preenchimentos para lacunas há muito presentes e cada pensamento transformado em palavra pulsa e reverbera. É bom falar. É bom chorar. Eles têm todo o tempo. Eles não têm muito tempo. Contradições, como bem cabe ao amor, inclusive ao amor que se vai, esvaindo-se lentamente. Os olhares dizem tanto ou mais que as palavras, mas ambos se fazem necessários quando se trata de conhecer um pouco mais o outro, esse alguém sempre tão insondável que não desistimos de sondar.



O amor é um mistério. Bize nunca explicita as razões concretas para a separação do casal, e pouco importa saber o que exatamente provocou aquela decisão de ruptura. A bem da verdade, há cenas em que paira a dúvida sobre a finitude desse relacionamento. Nenhum dos dois parece realmente capaz de conseguir se desvencilhar totalmente do outro. E talvez nem seja realmente possível. Por muito tempo, um era o outro. Ele estava nela e ela estava nele. Em algum momento, essa identificação profunda e especular se perdeu. Se existe a chance de se recuperá-la ou não, não se sabe. Ambos, porém, tendem a se inclinar para a escolha do fim. E colocar pontos finais é muito mais difícil do que parece. Em algumas situações, parece realmente impossível. Em algumas situações, é verdadeiramente impossível. O casal tateia, hesita. Fala do que foi, do que seria e do que teria sido. Falam do passado, do presente que se pode mudar, do futuro que poderá chegar e do que se pôde mudar um dia, mas agora não se pode mais. Simplesmente passou. Trata-se apenas de constatar um fato.

Pode-se dizer que O bom de chorar componha uma trilogia informal de Bize sobre os relacionamentos, e se encontre exatamente no meio do caminho. Seu filme anterior, Na cama (Em la cama, 2005), traz um homem e uma mulher que se conhecem casualmente e passam a noite em um motel. Não chegam a se tornar um casal, mas não deixam de pensar nessa possibilidade e nas suas derivações. Em seguida a O bom de chorar, ele dirigiu A vida dos peixes (La vida de los peces, 2010), sobre um casal desfeito que volta a se encontrar e repensa junto o que mudou e o que permanece exatamente igual entre eles. Portanto, o casal sem nome já percorreu parte do caminho, mas ainda tem uma estrada pela frente, que pode ser de distância ou proximidade, a depender da decisão final que apresentarem. Enquanto promovem o balanço da relação, eles próprios oscilam, vagueiam, tosquenejam. Vão a uma festa, encontram outros amigos em comum e falam de si mesmos e do outro para esses amigos. Esse é o momento em que precisam falar. Se não falarem, podem explodir com tudo o que guardam consigo. À exposição do problema, seguem conselhos. A ponderação sobre a sua validade é do (ex?) casal.

De todas as lindas cenas do filme, a mais linda é a que mostra os dois sentados lado a lado e simulando uma série de trocas de correspondências, como se não estivessem na presença um do outro e começassem a fabular sobre os desdobramentos de sua separação, apresentando detalhes sobre suas vidas e futuros. A sinceridade exala nessa passagem, e nos faz acreditar que foi concebida sob improviso. A depender do público, essa mesma cena pode fazer sorrir ou chorar. Com esse filme, Bize consegue inundar nossos corações com uma ternura cálida. O chileno é daqueles que abraça a estética minimalista, apostando no valor do silêncio, das trilhas ocasionais e pungentes e nas palavras que não vão além do suficiente. O bom de chorar é um novo atestato de sua competência que, por muitos pode ser incompreendida ou rechaçada, mas que merece, no mínimo ser conferida atentamente. No fundo, não apresenta nada de realmente novo sobre as relações, mas ganha em qualidade e interesse por soar sempre sincero e falar ao coração, passando longe de qualquer concepção formulaica. Nas palavras e nos olhares do casal, está toda ma história compartilhada. O resto é silêncio.

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