Interiores: o peso dos laços fraternos


De tempos em tempos, Woody Allen se propõe a travar diálogo direto com a obra monumental de Ingmar Bergman, que ele já declarou ser o seu cineasta predileto. A primeira vez em que isso aconteceu foi com Interiores (Interiors, 1978), não por acaso, o primeiro drama do novaiorquino, que evoca em toda a sua narrativa a tensão e o conflito esmagador que tanto caracterizam os exemplares da filmografia do sueco. Allen conta aqui a história de três irmãs com diferenças demarcadas entre si. Renata (Diane Keaton) é uma escritora talentosa e bem-sucedida com o público e a crítica que está vivendo um bloqueio criativo. Joey (Mary Beth Hurt) se ressente por não se ver à altura da irmã, e compete com ela o tempo todo. Flyn (Kristin Griffith) está sempre muito ocupada viajando como atriz para rodar seus filmes. Desde o começo, o espectador pode perceber o quão pouco essas mulheres se conhecem, ainda que carreguem o mesmo sangue em suas veias. E Allen se propõe a investigar de perto cada uma delas, como se quisesse entendê-las melhor.

Nesse sentido, o título da obra se justifica plenamente. A narrativa é centrada na perscrutação do que há de mais íntimo nas três irmãs, como se olhasse para dentro delas e também dos ambientes em que elas se encontram. No plano de abertura, o diretor já evidencia esse percurso introspectivo, mirando suas lentes numa casa vazia, com suas cortinas, sofás, janelas e cômodos e pontuando sua observação pelo silêncio, a exemplo do que Bergman fez em sua famosa trilogia no alvorecer da década de 60. Essa opção pela quase ausência de uma trilha sonora é crucial para a construção de uma atmosfera de sufocamento que percorre todo o filme. Poucas vezes se viu uma obra tão densa vinda do diretor, e Interiores só é equiparável nesse quesito a suas produções mais recentes, como Ponto final (Match point, 2005) e O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream, 2007). O longa em análise também é a primeira vez em que Allen não acumulou as funções de ator e diretor, respondendo “apenas” pela direção e pelo roteiro. Sua ausência em frente à câmera corrobora para a sensação de que esta não é uma típica obra sua, ainda que ela dialogue perfeitamente com suas produções pregressas e subsequentes.

Na relação tumultuada entre as protagonistas, nenhum véu as recobre. Somos apresentados às suas vaidades, seus egoísmos e suas dificuldades em se aproximar umas das outras, por mais que se desdobrem em tentativas, como faz Joey com Renata. Com isso, o desconforto muitas vezes invade a tela. Não há alívio cômico em Interiores. Toda a narrativa tem um ar sisudo, que remete imediatamente aos grandes dramas europeus, de que Allen é tributário, ainda que, na maioria de seus filmes, eleja a abordagem cômica para abarcar seus temas prediletos. Aqui, ele também apresenta sua primeira meditação mais aprofundada sobre o papel do artista do mundo, colocando Renata em franco questionamento de sua obra, sem saber se o que escreve pode causar alguma diferença no mundo e nas pessoas. Ela é uma das várias personagens escritoras na vasta galeria de Allen, e é também a segunda personagem escritora de Keaton em um filme do diretor, visto que ela já havia interpretado uma poetisa sem talento em Dorminhoco (Sleeper, 1973). A grande diferença entre ambas é o tom grave que ele impõe ao trabalho da artista, que passa o filme inteiro em um bloqueio criativo e alimenta pensamentos de morte.



O desempenho das atrizes é formidável. Cada uma delas entrega uma performance digna de admiração e traduzem verbal e gestualmente a angúsita que toma conta de suas vidas. Além do trio central, é importante atentar também para o trabalho de Geraldine Page, como a atormentada Eve, a matriarca que não suporta a ideia de perder o marido. Inicialmente, ele propunha um tempo a ela para respirar, mas logo se interessa por uma outra mulher e tira o chão da agora ex-esposa. É assim que entra em cena Pearl (Maureen Stapleton), como a luz e a alegria que iluminam a vida de Arthur (E. G. Marshall), o patriarca que reclamava a necessidade de respirar novos ares. Ela é o oposto de Eve, e consegue cativar as três irmãs e até o público, por conta de sua personalidade mais solar e encantadora e de seu talento para a música. É com ela a única cena em que há um personagem cantando, uma rápida quebra no silêncio reinante naquela família. Um silêncio que se revela tanto nas palavras não ditas quanto nas palavras que, uma vez ditas, repercutem em seu interlocutor de modo truncado, equivalendo, por isso, ao silêncio.

Graças a esses e outros elementos, Interiores é mais uma prova da versatilidade de Allen em falar sobre os mesmos temas com sutis variações e ganhar o interesse de parte dos espectadores. A sua perseguição ao amor e a morte, francas bases de toda a sua obra, aparecem aqui vestidas com uma roupagem séria e misteriosa, inaugurando uma trajetória no drama tão bem-sucedida quanto na comédia, ainda que boa parte da crítica veja seus filmes de inspiração bergmaniana com uma quase inexplicável reserva. Allen sabe lidar com o drama. E essa dicotomia insistente entre os dois gêneros já foi objeto de sua análise em Melinda e Melinda (Melinda and Melinda, 2004), provando que ele sabe tanto lidar com cada um em separado quanto é capaz de romper com as fronteiras ou colocá-los lado a lado. Como curiosidade, vale comentar que o título Interiores foi uma sugestão de Diane Keaton, cujo apelido carinhoso já havia originado o título original de Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977), exatamente no ano anterior. Eve, por sua vez, foi uma personagem oferecida inicialmente a Ingrid Bergman, que já se encontrava ocupada para assumir o papel, o que inviabilizou aquela que seria a única parceria da atriz com Allen. Seja como for, o filme comprova sua força com o passar do tempo e invade a tela com seu peso dramático, merecendo ser revisto e analisado em cada instante de sua pulsação lenta e silenciosa.

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