Cores que evocam o silêncio e a angústia em O deserto vermelho


Em se tratando de entender e conhecer o outro, este mundo é um grande deserto. Estamos todos à procura de alguém que nos possa completar, que supra nossa sensação de vazio, que preencha nossas lacunas. E, nessa procura, estamos todos sozinhos. Em meio à multidão, mas sozinhos. O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964) reitera esse ponto de vista na figura de Giuliana (Monica Vitti), uma jovem mulher que acabou de sair de uma clínica psiquiátrica e ainda se encontra sob o efeito da forte crise nervosa que a levou ao local. Desde o começo, sua atonia salta aos olhos e indica uma mulher em estado de desespero latente, que luta contra a própria loucura e caminha a esmo pela cidade. Uma cidade industrial – Ravenna – que respira ares viciados e cujo céu plúmbeo denuncia o triunfo do capitalismo. Seu marido Ugo (Carlo Chionetti) é impotente diante desse drama, embora se esforce o máximo possível para diminuir a angústia da esposa. Aquele desconforto, porém, nem ela mesma é capaz de decifrar e explicar a quem quer que seja.

O filme ficou conhecido como uma espécie de epílogo para a Trilogia da Incomunicabilidade de Michelangelo Antonioni, que havia sido encerrada dois anos antes com O eclipse (L’eclisse, 1962). Em comum com os longas anteriores, O deserto vermelho tem a presença de Vitti no elenco, que veio a ser esposa do diretor na vida real por anos e anos. Para além dessa recorrência da atriz, existe a matriz do desconforto que atravessa todos os filmes, bem como os diálogos esparsos e os longos planos-sequência que ajudam a compor um quadro de seres humanos em relações truncadas consigo mesmos e, por conseguinte, com os outros. Por outro lado, no filme em questão Antonioni utiliza as cores pela primeira vez, e essa decisão contribui decisivamente para transformar o filme em um denso estudo sobre vácuos de comunicação assinalado pela policromia. Tudo o que a câmera do cineasta filtrou em preto e branco na Trilogia se converte aqui em cores vibrantes, especialmente o vermelho do título. É interessante notar o trabalho cuidadoso da fotografia assinada por Carlo Di Palma, que, curiosamente, viria a clicar filmes de ninguém menos que Woody Allen, em títulos como Hannah e suas irmãs (Hannah and her sisters, 1986) e A era do rádio (Radio days, 1987). No caso de O deserto vermelho, suas lentes captam com acuidade os matizes dramáticos necessários ao dimensionamento do estado acachapante de Giuliana, deslocada de seu mundo.

Em um mundo repleto de cores, cada uma delas pode representar um estado de espírito distinto. Da tranquilidade à inquietude, as emoções dos personagens do filme são traduzidas pelo jogo cromático engendrado por Antonioni e endossado por Di Palma. A exemplo de Bergman, o realizador vinha insistindo no preto e branco mesmo depois do advento das cores no cinema. Com O deserto vermelho, ele se abriu para uma paleta colorida e isso resultou, como foi apontado pela crítica, em uma apoteose da abstração. Tudo é estilizado, e a cor dos objetos e das paisagens que se veem na tela não correspondem necessariamente àquilo que a realidade aponta. E chegar exatamente ao real nunca foi uma pretensão de Antonioni. Sua proposta se resigna a investigá-la, em vários de seus graus de insolidez e opressão. Giuliana é a síntese da vez dessa busca intensa, que gerou tomos consecutivos tanto antes quanto depois na monumental filmogratia do diretor. Os silêncios de seus personagens são eloquentes, por mais paradoxal que seja essa afirmativa. E as palavras nunca são suficientes, apenas ampliam a dor da incompreensão e da incompletude. Trata-se de um cinema para poucos, por serem poucos os que se dispõem a tocar essas chagas. Para a maioria – infelizmente, diga-se de passagem – acompanhar um filme como O deserto vermelho é um martírio. Para quem se deixa levar pelo seu percurso lento que explode em cores, a experiência pode até mesmo auxiliar no autoconhecimento.




Curiosamente, o filme se chamaria a princípio Celeste e verde, mas Antonioni mudou de ideia a respeito e comentou com Godard que esse não era um título “suficientemente viril”. O verde remete ao passado de Giuliana, e também está presente em sua roupa a maior parte do tempo, como um simbolismo da sua dificuldade em superar a crise avassaladora que lhe sobreveio. Trata-se de uma das cores frias, que se opõe ao vermelho, uma das cores quentes, que aparece tanto no título quanto na cena da orgia. O próprio Antonioni foi enfático ao afirmar que a cena teria sido cortada a versão final são pudesse ter sido filmada a cores. Ela é mais um dos indícios da tentativa desesperada de conexão com outrem praticada pelos personagens, que se revela, como as demais, algo passageira. A sensação de completude, na vida, está nos átimos, como postulou Georges Bataille: ela se encontra no alento do ventre materno e na explosão do êxtase erótico. Giuliana diz a Ugo que tem vontade de fazer amor, e o que parece uma possibilidade de acerto entre o casal só revela o abismo que os separa. O sexo é caótico e muito mais uma tentativa que uma concretização. O veredicto de Antonioni é desolador e produz um desconforto descomunal. E ele apenas apresenta um problema, sem se preocupar em apontar uma solução a respeito.

As palavras, quando ditas, têm efeitos similares ao de arremesso de objetos pontiagudos contra o interlocutor. Ferem, laceram e doem. Doem muito. Nomear sentimentos é uma empresa árdua, e nem Giuliana nem qualquer um dos personagens de O deserto vermelho é capaz de dar conta dela com sucesso. O roteiro de Tonino Guerra e do próprio Antonioni reforça essa dificuldade o tempo todo, privilegiando a contemplação de amplos espaços e praticamente abdicando dos diálogos, tal qual anuncia a sua abertura. E o drama de Giuliana em meio à cidade sem alma e de muitos utensílios industriais se correlaciona plenamente com O eclipse e seus vociferantes apontadores da Bolsa de Valores, pelo que apresenta de crítica ao capitalismo. O deserto vermelho fala, em última instância, da total falta de lugar de pessoas, que se equiparam aos objetos, tornando-se passíveis de câmbio. Antonioni disseca seus personagens guiado por essa perspectiva principal, abandonando qualquer verniz embelezador e expondo as rachaduras de seus personagens disfuncionais. Sua capacidade de causar incômodo deriva diretamente dessa busca intensa, e responde belo brilho impávido de sua obra, sempre guarnecida com desconcertantes contornos psíquicos.

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