O palhaço e a luta para conservar a motivação interior


Exaltado pela crítica mesmo antes de entrar oficialmente em cartaz, durante sua exibição em festivais, O palhaço (idem, 2011) é a segunda incursão de Selton Mello na direção de um longa-metragem. A exemplo do que fizera em Feliz Natal (idem, 2008), aqui ele se volta para a introspecção, e oferece uma história cativante sobre a procura pela identidade e pela motivação de um artista do riso em deambulação constante. Benjamim (Mello) é o palhaço do título, que, quando está no picadeiro, atende pelo nome de Pangaré e tem a árdua missão de arrancar risadas de seu público. Ele é apenas um dos integrantes da trupe do circo Esperança, um nome bastante sugestivo para quem está à volta com a necessidade de reencontrar a sua. Seu grande companheiro de cena é o pai, Valdemar (Paulo José), também conhecido como o palhaço Puro Sangue. Ambos são a grande atração do circo, mas vivem momentos conturbados quando estão fora de cena.

O grande acerto de Selton Mello com esse filme é a sua aposta na delicadeza. O diretor conduz as cenas com fluidez notável, e abre mão de certos diálogos, que prefere manter implícitos quase sempre. Diferentemente do seu trabalho anterior, aqui ele também está à frente das câmeras, e sua decisão de se escalar para protagonista também foi acertada. Em meio às nuances de sorrisos e lágrimas represadas de seu Benjamim, ele traduz a angústia de um homem simples e tímido que se questiona o tempo todo sobre quem pode fazê-lo sorrir enquanto ele se preocupa em despertar essa reação nas outras pessoas. Trata-se de um drama profundo que atravessa a sua caminhada e, a certa altura, compromete sua atuação no picadeiro. Mais do que o palhaço, interessa a Mello examinar o homem que se encontra sob a pintura facial que denota alegria a despeito do estado de certa amargura vivido pelo protagonista.

E, nessa busca pelo homem, ele construiu um filme de muita sensibilidade e certa pureza, que dialoga com a plateia pelo que traz de universal, de inerente à condição humana. É sabido que existe um paralelo entre Benjamim e o próprio diretor, que se encontrava desmotivado com a sua arte à época das filmagens. Essa quase depressão do artista teve relação direta com a baixa receptividade do público a Feliz Natal, o que o levou a repensar seu ofício. Felizmente, essa decepção serviu de matéria-prima para O palhaço, e gerou uma espécie de conciliação entre o público, a crítica e Mello, uma unanimidade sempre almejada mas nem sempre alcançada. Ao longo do filme, o diretor se dedica a desconstruir Pangaré e a apresentar Benjamim, sem dar respostas totalmente prontas e investindo com relativa intensidade nas elipses. O protagonista fala muito mais com seus olhares do que com seus lábios. É preciso estar atento a essas nuances de comportamento que determinam suas atitudes (ou a falta delas).



Grandes filmes podem ser assim: valorizadores de passagens silenciosas de diálogos, cuja potência reverbera intensamente. É uma escolha algo arriscada, mas que o realizador brasileiro soube fazer muito bem em O palhaço. Aliás, ele também conseguiu uma harmonia notória entre os componentes do elenco. E essa coesão que o elenco ostenta é fruto, principalmente, de uma vasta gama de pequenas gentilezas feitas pelo diretor durante as filmagens. Em entrevista a um importante veículo de comunicação, o autor da matéria sublinhou a preocupação dele em demonstrar o quanto cada ator é importante para o sucesso do todo, o que incluía recadinhos carinhosos para a equipe e um convite a uma das atrizes cheio de delicadeza. Com muito afeto, o Selton Mello diretor conquista o público e o Selton Mello pessoa conquistou seu elenco, afiadíssimo em seus papéis, alguns até menos óbvios para suas envergaduras físicas, como é o caso da dócil personagem de Fabiana Karla, a quem o cineasta se referiu como uma das grandes atrizes do país, e que faz misérias diante da câmera em instantes fugidios de sua presença.

Há que se destacar a magna interpretação de Paulo José, um mestre no que faz. A sua parceria com Mello é estupenda e rende cenas memoráveis, seja quando eles estão na pele de palhaços, seja quando são apenas Benjamim e Valdemar, envoltos em problemas e mergulhados em tentativas de levar seu ofício à frente. Paulo comove com seu personagem, mas não é uma comoção que rima com pena. Trata-se de um sentimento de empatia profunda que Valdemar desperta no espectador dotado de um mínimo de sensibilidade pelo ser humano. Veteraníssimo, ele sabe atingir nossos corações e produzir encanto e alegria na medida certa. E pensar que, diante da figura quase mítica do ator, Selton Mello hesitou em dirigi-lo, com medo de suas reações. Grande bobagem. Segundo o próprio diretor, ele exibiu uma generosidade ímpar em cena e trouxe boas contribuições ao filme, como quando sugeriu muito sutilmente que Mello interpretasse uma de suas cenas com um pouco mais de contenção.

A princípio, o papel de protagonista tinha sido oferecido a Wagner Moura e Rodrigo Santoro, mas ambos se viram obrigados a declinar do convite por conflito de agendas. Com isso, Mello assegurou sua onipresença no cinema nacional, incluindo mais um personagem marcante à sua vasta galeria de seres humanos notáveis, tanto para o bem – o Leléu de Lisbela e o prisioneiro (idem, 2003) – quanto para o mal – o João Guilherme Estrela de Meu nome não é Johnny (idem, 2007). Em sua condição de palhaço, Benjamim sintetiza o homem inquieto, que precisa cavar poços profundos para reencontrar a motivação interior, renovando-a para ser uma fonte perene. Essa intensa procura se traduz principalmente em um ventilador, que é, por assim dizer, o signo identitário do personagem, ao qual ele se apega como forma de ser alguém no mundo e para o mundo, e não apenas para si mesmo, se é que essa certeza ainda existe. E é assim que O palhaço nos arrebata: economia dialogal por verborragia, sorrisos discretos por risos rasgados, gestos contidos por atitudes exacerbadas.

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