Eu, Daniel Blake: uma odisseia da resistência

Resistir é preciso. A frase, carregada de vontade, é intensamente tornada ação pelo protagonista de Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake, 2016), segundo filme pelo qual o realizador Ken Loach foi contemplado com a Palma de Ouro em Cannes. Sujeito pacato e ainda convalescendo de um ataque cardíaco, ele se vê nas garras de um governo burocrático ao extremo, capaz de exigir provas e tarefas estapafúrdias em troca da concessão de um auxílio financeiro durante sua impossibilidade de trabalhar. Muito se falou sobre Aquarius (idem, 2016) - também exibido na Croisette - ser um filme de fortes reverberações políticas, mas este aqui vai ainda mais fundo em questionar um sistema defasado e desumano que coloca um trabalhador em uma espiral de humilhações. Em comum com Clara, porém, Daniel tem o espírito guerreiro. São legítimas ilustrações da expressão "não deixa a peteca cair". 

Mais uma vez, Loach dirige e Paul Laverty escreve - tomara que essa parceria siga firme e forte - a trajetória de um sujeito na contramão das circunstâncias que angaria simpatizantes e defensores que se identificam diante da sua disposição em assumir o posto de estandarte dos desmandos de uma organização nefasta, que lembra muito o horror da burocracia brasileira. É o governo das escrivaninhas, literalmente, que cava uma trincheira entre o cidadão e seus direitos mais básicos, chegando ao cúmulo de vilanizá-lo pelo descumprimento de uma regra absurda: é preciso cumprir 40 horas semanais de procura por emprego, mas não se pode aceitar nenhuma oferta; é uma procura "para inglês ver", os ingleses compatriotas, nesse caso. Daí surge a exasperação na audiência exposta àquele caso que, pasmem, está longe de ser singular. Newcastle, afinal, não parece mais tão longe assim.

O papel é defendido com tarimba por Dave Johns, cuja estrada artística passa pelo stand-up comedy e pela escrita além da atuação. Para o público brasileiro, porém, ainda representa sangue novo, e sua aparência de homem comum é um gancho perfeito para o estabelecimento de uma forte empatia com sua causa que, como já se disse, é a de muitos outros cidadãos. Quem nunca se viu ao menos uma vez pendurado em um telefone com uma musiquinha insuportável à espera de atendimento? E, para piorar, quando a tal musiquinha é interrompida, receber a informação redundante de que todas as linhas estão ocupadas e é necessário esperar o contato de um atendente? Essas e outras situações irritantes formam o périplo de Dan, como é chamado pelo vizinho estrangeiro que tenta fazer a vida com um comércio alternativo de tênis, por assim dizer. Em torno de Dan, parece haver somente pessoas em situação parecida ou pior que a sua, e seu caminho logo se cruza com o de uma jovem também vítima do governo.


O verdadeiro vilão da história é essa tal entidade quase abstrata, da qual todos nos queixamos e a cujas arbitrariedades acabamos por nos curvar. O governo maltrata, retarda, testa, exige, questiona e não oferece uma contrapartida razoável diante de tantos verbos negativos. Mas Dan resiste. Resiste como o Eric (Steve Evets), de À procura de Eric (Looking for Eric, 2009), o Fergus (Mark Womack) de Rota irlandesa (Route irish, 2010), o Robbie (Paul Brannigan) de A parte dos anjos (The angel's share, 2012), o  Jimmy (Barry Ward) de Jimmy's hall (idem, 2014), só para citar alguns homens da galeria construída pelo diretor e seu parceiro roteirista. Não é de se espantar que se transforme em uma espécie de herói, sobretudo quando recorre a uma medida desesperada para atrair atenção para seu caso. É assim, aliás, que Loach reafirma sua veia política, tônica de boa parte de seus filmes, talvez todos, mesmo os mais aparentemente despretensiosos. A rotina de tapeações de Dan encontra paralelo na do personagem de Ricardo Darín em Relatos selvagens (Relatos salvajes, 2014), este em guerra contra a indústria de multas automobilísticas. 

Por sua estrutura tão verossímil e suas interpretações tão orgânicas, Eu, Daniel Blake tem seu título facilmente interpretável como uma triste metonímia. É também a prova de que uma nação dita de primeiro mundo também carrega suas mazelas e não distribui igualitariamente suas riquezas. Com toda a razão, Loach e sua equipe foram ovacionados por 15 minutos após a exibição do filme em Cannes. Ele também é um resistente, com seus 80 anos de vida e uma carreira fílmica que já se tornou cinquentenária. Para além de rótulos de comunismo, capitalismo e tantos outros "-ismos", o roteiro nos lembra que é importante conservar a humanidade, na acepção do sentimento que leva a se colocar no lugar do outro, de ver que ambos estão no mesmo barco e precisam singrar juntos o mar encapelado.

9/10

Comentários

Postagens mais visitadas