A espera focalizada em O deserto dos tártaros

Mergulhar nas profundezas dos sentimentos dos homens era uma notória habilidade de Valerio Zurlini. A cada vez que escavava o que ia no coração de seus protagonistas, encontrava uma dor que não poderia ser totalmente compartilhada, talvez apenas ouvida. Não foi à toa que lhe sobreveio a alcunha de Poeta da Melancolia. Em filmes como Verão violento (Estate violenta, 1959), A moça com a valise (La ragazza con la valigia, 1961) e A primeira noite de tranquilidade (La prima notte di quiete, 1972), o realizador explorou as interdições de sujeitos à procura de realização e em eterna incompletude, oferecendo um panorama da amarga condição humana. Esses seres errantes, porém, são tratados com muito carinho nessas narrativas, o que também significa um vislumbre de esperança, um átimo de iluminação que surge com alternativa a certa altura, ainda que esses personagens não cheguem a alcançá-la. 

Em O deserto dos tártaros (Il deserto dei tartari, 1976), não é diferente. Adaptação do romance homônimo de Dino Buzzati, publicado pela primeira vez em 1940 e uma das obras mais apreciadas da literatura italiana, o longa-metragem trata sobre a espera antes de mais nada. Espera que pode consumir anos da vida de quem se submete a ela, que encobre e deturpa a visão como uma nuvem espessa. As vítimas, por assim dizer, dessa situação perturbadora, são os componentes de uma tropa do Exército que vão para o deserto, onde devem ficar a postos para fazer frente aos tártaros do título, inimigos de quem se ouve falar coisas terríveis, o que os torna lendas do combate. Porém, à medida que o tempo avança, toda a preparação em que esses homens se envolvem se mostra cada vez mais vã. Seriam mesmo os tártaros reais? Quando poderiam atacar? Por via das dúvidas, eles permanecem em posição de ataque, desfrutando de pouquíssimos momentos de tranquilidade ou descontração.

O símbolo máximo dessa espera é o tenente Drogo (Jacques Perrin), que se despede da mãe saudosa por antecipação logo no começo da história, partindo para a fortaleza sem qualquer perspectiva de retorno. Uma vez instalado no interior daquelas muralhas, ele percebe o quanto a vida passa devagar ali, enquanto, na verdade, voa quando se pensa no mundo além daqueles limites. Aos poucos, ele trava amizade com seus companheiros de luta, bem como com seus superiores, e o elenco exclusivamente masculino vai sendo apresentado na tela: Filimore (Vittorio Gassman), Tronk (Francisco Rabal), Nathanson (Fernando Rey), Hortiz (Max Von Sydow), o médico Rovin (Jean-Louis Trintignant) e o general (Philippe Noiret), cada qual com seu histórico de lutas e perdas. O olhar de Drogo vai sendo transformado dia após dia e, se ao chegar ali ele desejava ficar o menos tempo possível, acaba redefinindo seu horizonte de expectativa e quer estar na linha de frente quando os inimigos chegarem.

O que há de mais desconcertante em O deserto dos tártaros é justamente essa espera. Os dias passam e não há nada de novo no front. Vez por outra, algum dos soldados diz ter visto o que parece a aproximação dos oponentes, mas esses lampejos nunca chegam a se confirmar. A passagem do tempo, aliás, é bem discreta. Quando menos se espera, começam a surgir as rugas de preocupação, as testas franzidas, os olhos fundos e os primeiros fios de cabelos brancos, denotando que uma boa parte da vida de Drogo e seus companheiros se perdeu ali, e não haverá reparação para esses longos instantes que poderiam ter sido vividos em mil outros lugares, em mil outras atividades. Zurlini expõe essa verdade de modo suave, investigando os aspectos psicológicos de um conflito. Não há espaço para embates físicos ou explosões, e a única bala disparada fere de morte os interiores de suas testemunhas, tanto ou mais do que o seu alvo. Ali repousam as esperanças e os anseios, um dia tão vivazes e hoje relegados a um lugar remoto da mente.


Foi o último filme do cineasta bolonhês, que nunca conheceu o prestígio em vida e escolheu remar contra o apelo comercial do cinema de seu país, bem como do mundo. Suas obras hoje seguem como tesouros a serem desencavados pela maioria dos espectadores, inclusive cinéfilos de vasta bagagem que privilegiem o contato com produções que não fogem ao enfrentamento dos nossos fantasmas e demandas mais perturbadores. O deserto dos tártaros também é um filme sobre quimeras, não somente aquelas que estão em relação de sinonímia com sonhos, mas também aquelas que aludem à acepção original de monstros, ilustrada pelas representações híbridas de cabeça e corpo de leão e mais duas, uma de cabra e outra de serpente ou suas variações ao longo da História. São pensamentos que nunca adormecem, sensações que não se dissipam e incidem sobre o coração como ondas que vão e vêm. 

É difícil destacar somente um nome do elenco, embora Perrin tome conta da tela em mais essa brilhante colaboração com o realizador após A moça com a valise e Dois destinos (Cronaca familiare, 1962). Nos seus olhos castanho-claros, toda uma vida se resume, expressando a melancolia em que Zurlini se especializou ao longo da carreira com habilidade, se é que esse adjetivo é o mais cabível em contexto desses. Com a chegada de seu Drago à fortificação, parece haver uma iminente quebra da monotonia reinante no local, mas sua tenacidade não resiste o suficiente para isso e ele se torna mais um à espera. Por vezes, tem diálogos cortantes com Hortiz, de quem ouve sua história de vida contada de maneira resignada, revelando mais um fantástico desempenho de Von Sydow, que também já havia testemunhado o desconcerto do mundo através de Ingmar Bergman em O sétimo selo (Det Sjunde inseglet, 1957) e trouxe essa experiência para O deserto dos tártaros. Ao apagar dessas luzes dessa despedida de Zurlini, segue o questionamento: quantos de nós também não passamos a vida à espera?

8.5/10

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