Contrastes humanos, o desejo de aproximação entre arte e realidade

Em apenas 90 minutos, Contrastes humanos (Sullivan's travels, 1941) dá o seu recado: mais vale arrancar um sorriso sincero da plateia do que fazê-la verter um rio de lágrimas. É como pensa John Lloyd Sullivan (Joel McCrea), diretor de Cinema que resolver filmar E aí, meu irmão, cadê você?, em que se propõe a debater questões de ordem social. Ao surgir com a ideia, ele é rapidamente censurado por seus produtores, que não conseguem imaginá-lo a frente de um projeto dessa natureza, argumentando que ele nunca soube o que é ser pobre. Sem uma vivência na escassez, torna-se impossível para John inserir veracidade ao filme, afirmam aqueles homens sempre dispostos a seguir apostando no que já deu certo outras vezes. Qualquer semelhança com os produtores de hoje não será mero acaso.  

Inconformado com a objeção que sofre, John toma a decisão de se aproximar dos mais necessitados a fim de sentir na pele como é lidar com essa insuficiência de recursos financeiros e, assim, tornar seu novo filme o mais convincente possível. De início, ele investe em uma composição estereotipada de desvalido, sobretudo no que se refere à indumentária. Seu fiel mordomo é outro que não leva fé em sua ideia, alegando o mesmo que os produtores a seu respeito. Apesar de todas as palavras de desencorajamento, John segue firme e vai adiante, contando com uma supervisão de sua equipe à sua revelia. Quando, finalmente, consegue se desvencilhar de todo aquele aparato disponível em caso de desistência, pode começar a viver uma realidade oposta à sua, e conhece uma linda garota (Veronica Lake) que está em busca de uma chance como atriz de Cinema.

O primeiro encontro de ambos é uma das primeiras amostras dos diálogos deliciosos assinados por Preston Sturges, também responsável pela direção de Contrastes humanos, um exemplo de título nacional tão bom ou mais eficiente que o original. É exatamente o que John vivencia: as diferenças entre a sua vida e as daqueles que deseja transformar em objeto de filmagem. À medida que aproxima John e a garota, Sturges vai ziguezagueando os lugares comuns para iluminar a humanidade dos dois, fazendo-os muito mais que o homem rico e a jovem sonhadora sem os pés no chão. Eis um dos grandes méritos dessa produção que, incrivelmente, foi esnobada pela Academia, não recebendo uma indicação sequer no ano seguinte à sua realização. Talvez porque os olhos de todos àquela época estivessem voltados para um monumento intitulado Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), estreia de um certo Orson Welles como diretor e ator. Estatuetas à parte, o longa de Sturges é uma valioso exercício sociometalinguístico, por assim dizer.


A propósito do cineasta, alguns detalhes sobre sua carreira revelam sua importância para a Sétima Arte, a começar pelo fato de ele ter sido o primeiro a acumular as funções de diretor e roteirista em um filme, e desempenhou ambas com enorme competência. Ele também foi responsável por injetar frescor às comédias screwball, um subgênero caracterizado por apresentar situações surreais combinadas a trapalhadas e ação rápida, cujo exemplar mais famigerado é Aconteceu naquela noite (It happened one night, 1934), de outro ás na direção: Frank Capra. O que Sturges fez foi garantir excelentes diálogos para essas produções, e muitos deles seguem atuais ainda hoje, revelando que nem só de humor ingênuo se fazia a Hollywood clássica. No caso de Contrastes humanos, o detalhe mais importante talvez seja a autocrítica que o filme tem a oferecer conforme vai questionando os grandes magnatas que insistem em dar apenas entretenimento descartável ao público de cinema.

Em alguma medida, a experiência de conviver com a garota e outras pessoas nem um pouco abastadas é transformadora para John, mas nada na linha de dramalhão piegas - o que deve explicar a ausência de indicações ao Oscar. A narrativa mantém um ritmo leve, provando que conjugar diversão e reflexão é sempre possível, basta haver interesse dos envolvidos. Fica difícil não se apaixonar pelos personagens de Contrastes humanos porque eles são palpáveis, talhados com o esmero de um artista que faz jus ao título. Enquanto vai conhecendo o outro lado da moeda, John vai descobrindo e consolidando sua verdadeira vocação: a de um diretor que leva alegria ao público, uma constatação do próprio Sturges de que a arte do riso pode e deve ser considerada tão nobre quanto a do choro. A essa altura, a história já deu conta de emocionar e mostrar que a arte sempre buscou imitar a vida e, nesse exercício de mímesis, obras de grande valor já foram legadas aos homens. 

9/10

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