Cosmópolis e o pulsar da decadência humana


A maioria dos cinéfilos entusiastas de David Cronemberg tremeu ao saber que ele havia escolhido Robert Pattinson como protagonista de Cosmópolis (Cosmopolis, 2012), exercício de paciência sobre a decadência humana. Afinal, um ator cujo currículo pregresso ostenta Crepúsculo (Twilight, 2008) e seus derivados somado a uma carpitaria dramática rudimentar soa sempre alarmante. Felizmente, o resultado final do longa não é comprometido pela sua presença em cena, que preenche cada minuto da narrativa – os males da obra são outros. Cronemberg partiu do romance homônimo de Don DeLillo para compor uma atmosfera de desolação em Manhattan, coração financeiro novaiorquino que funciona como tipo para o mundo inteiro. Em meio a um cenário de tecnologia e frieza, o bilionário Eric Packer (Pattinson) deseja apenas cortar o seu cabelo em um salão simples e decide atravessar a metrópole que habita para realizar sua vontade. O problema é que o caos se instaurou no trânsito devido à passagem do presidente dos EUA por ali no mesmo dia.

A ação de Cosmópolis, bem como a ausência dela, transcorre em sua quase totalidade na limusine que conduz Eric em seu percurso. O veículo dá o tom de uma longa odisseia particular enfrentada pelo protagonista, que vive seu mundo confinado àqueles poucos metros quadrados de lataria e vidros. Ali, ele recebe seu médico para exames diários e minuciosos, informa-se a respeito do andamento dos investimentos na Bolsa de Valores, comunica-se com seus vários empregados e recebe visitas com as quais travam diálogos que oscilam entre o sensato e o nonsense. Eric está no mundo e, ao mesmo tempo, isola-se dele. Prefere a sua redoma indelével, que lhe confere conforto e controle. A sociedade caminha a passos frenéticos, e ele também é parte dessa engrenagem que não pode se cansar, sob pena de ser substituída por outra que mantenha o funcionamento da roda. Nesse sentido, o filme também aponta, com um teor levemente denunciatório, um sistema econômico em estado convulsivo.

Cosmópolis também abarca as relações humanas, demonstrando o quanto seu truncamento se acentuou com o advento de tantas parafernálias que, supostamente, serviriam como elo comunicativo e consequente redutor de distâncias espaciais. É fato notório que estamos inseridos em um tempo no qual todos podem se relacionar com todos: não há barreiras locativas, por assim dizer. Ao mesmo tempo, estamos mais sozinhos do que nunca, circunscritos a quartos e outros ambientes individualizantes que nos tornam virtualmente próximos e pessoalmente longínquos, uma condição que detona ou, no mínimo, trava manifestações concretas de carinho. A palavra escrita ganhou uma ênfase absurda, porque a falada vem perdendo terreno – não há ouvidos, o estímulo vem daquilo que se pode enxergar, ainda que não seja palpável. Eric é um fruto típico de sua época, e o roteiro do próprio Cronemberg dá conta de maximizar sua condição de refém do egoísmo, que escolhe deliberamente não tomar consciência dos sons, cores e pessoas ao redor, agindo como se estivesse sobre um gigantesco tabuleiro de xadrez.


Com isso, as conversas com Vija (Samantha Morton), Didi (Juliette Binoche) e outros passageiros de sua limusine se resumem a interações vazias e algumas falsas adulações. As duas personagens, porém, chegam a dizer verdades incômodas que promovem solavancos internos no personagem, e respondem por dois dos melhores momentos da trama, pontilhada por uma lentidão que, por vezes, incomoda e não soa orgânica. Binoche é daquelas atrizes hipnóticas que consegue fazer maravilhas com curtas aparições em cena, além de encher a tela com sua beleza estonteante. Como Didi, ela está muito à vontade em uma cena de sexo com Eric, deixando boa parte do seu corpo à mostra sem qualquer pudor ou gratuidade. A sequência em que eles transam está longe de ser excitante, está muito mais para caótica e opaca. Morton também faz de sua participação algo marcante, e faz pensar o quanto há de injustiça no pouco reconhecimento que ela recebe do público e de boa parte da crítica.

Por outro lado, Cosmópolis enfada com seus problemas de ritmo. A narrativa monocórdia dilui o interesse do espectador consideravalmente. Não temos o frenesi entusiasmante de Holy motors (idem, 2012), por exemplo, que também traz um protagonista se deslocando por uma metrópole em uma limusine. Ao mesmo tempo, estamos diante de um Cronemberg legítimo, que repensa seus temas favoritos – sexo, morte, corpo, delírio – sob uma roupagem arrastada e distópica, vinda imediatamente após seu flerte com um cinema mais clássico em Um método perigoso (A dangerous method, 2011), iniciativa muito mais feliz em seu resultado final. Esse tom deveras lento se acentua lá pelos vinte minutos finais da história, que trazem um duelo verbal entre Eric e Benno (Paul Giamatti, livre do piloto automático), que já compusera o grupo de asseclas do jovem bilionário. O embate travado entre os personagens dura tempo demais e se perde em elocubrações desnecessárias. Funciona muito mais a trombada de Eric e Andre (Mathieu Amalric, ótimo com sotaque romeno), outra das sacudidas no protagonista. Quando chega ao seu epílogo, Cosmópolis abre margem para uma sentença sobre sua vocação: diagnosticar as síndromes de um século em diálogos ora banais e enfadonhos, ora pertinentes travados em deslocamentos pelo cosmos citadino.

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