Os guarda-chuvas do amor, um passeio por cores e estações


Empolgante e apaixonante do começo ao fim, Os guarda-chuvas do amor (Les parapluies de Cherbourg, 1964) é um musical sobre aproximações, amor e desencontros. Estrelado por uma então jovem Catherine Deneuve, o filme narra a trajetória do casalzinho Geneviève (Deneuve) e Guy (Nino Castelnuovo), que se conhece pelas ruas do subúrbio parisiense. O amor pega-os de jeito, e eles se veem cada vez mais desejosos da presença um do outro e fazendo mil planos para um futuro que pretendem viver em comum. E, desde o início, cada palavra dos amantes é cantada, mostrando que o diretor Jacques Demy decidiu seguir à risca a proposta de um musical, transformando as falas de todos os personagens em canções. É imprescindível habituar logo os ouvidos a esse expediente: caso contrário, o filme pode representar uma experiência bastante enfadonha. No fundo, é como se não houvesse qualquer diálogo na obra: apenas letra e música.

Orquestrados por esse repertório de lindos poemas cantados, Geneviève e Guy vivem sua história de amor, mesmo a contragosto da mãe dela, que não vê com bons olhos o namoro dos dois. A senhora Emery é dona de uma simpática loja de guarda-chuvas coloridos e acredita que a filha é muito jovem para se envolver com um rapaz, afinal ela tem apenas 17 anos. Para os padrões sessentistas, uma garota recém-saída da infância. E o relacionamento entre os protagonistas é cheio de outros percalços. Quando chega a Guerra da Argélia, Guy é recrutado para lutar pela França no conflito e, consequentemente, se vê obrigado a deixar Geneviève por tempo indeterminado. Essa acaba sendo a prova de fogo do amor dos dois, que precisam lidar com a ausência um do outro e entender melhor o que realmente sentem. Assim, passamos a acompanhar somente os passos de Geneviève, que entra em uma tristeza profunda com a distância do namorado, cujas cartas se tornam cada vez mais escassas.

Então, a senhora Emery percebe que é chegada a hora de atirar a garota nos braços de Roland (Marc Michel), um homem mais velho que está apaixonado por Geneviève e é capaz de dar inúmeras demonstrações de seus sentimentos por ela. A jovem, porém, continua com o coração preso a Guy, por mais que não saiba quando o rapaz retorna, se é que retornará. Como se pode perceber, os ingredientes básicos do melodrama estão presentes com toda a força em Os guarda-chuvas do amor, o que jamais se torna um demérito para o filme. Pelo contrário: trata-se de um musical contagiante e cheio de charme, com atuações algo naturalistas e aspectos técnicos bem cuidados. Como não se apaixonar pela fotografia de Jean Rabier? Milimetricamente pensada, ela nos proporciona um espetáculo policromático que nos faz querer estar naquela Paris dos anos 60 e também viver aquilo que os franceses graciosamente chamam coup de foudre, algo como o nosso conceito de paixão arrebatadora à primeira vista. O currículo de Rabier conta com numerosos títulos de prestigiados cineastas, como As corças (Les biches, 1968) e Madame Bovary (idem, 1991).


Em Cannes, o filme teve um grande sucesso, que lhe rendeu três prêmios do Festival, incluindo a disputada Palma de Ouro. No mesmo ano, competiam pela láurea máxima da mostra francesa longas de futuros medalhões como François Truffaut e Nelson Pereira dos Santos. As vitórias do filme são mais uma comprovação do quanto o júri do Festival costuma ser sensato e aprovar obras de vigor imagético e propostas algo inusitadas – vide o prêmio recente para A árvore da vida (The tree of life, 2011) que, guardadas as devidas proporções, também se constitui desses ingredientes. E, sem dúvida, o que há de mais delicioso em Os guarda-chuvas do amor é passear por vários sentimentos, cores e estações com desenvoltura, graças à condução irresistível de Demy, que nos toma pela mão e nos coloca dentro da história de amor e Geneviève e Guy, mostrando discretamente o impacto no cotidiano de pessoas comuns que, em um primeiro momento, não tinham nada a ver com o conflito. Por ser um musical, o filme acaba por imprimir uma certa dose de estilização às suas cenas, mas isso não chega a destituir seus personagens e suas ações de um caráter plausível e, de certa forma, ainda se mantém como a leitura de uma época, já que a postura de Geneviève e de sua mãe refletem a mentalidade das mulheres de seu tempo.

O filme deu início a uma série de quatro colaborações entre Deneuve e Demy, que se estendeu até os primeiros anos da década de 70. Duas garotas românticas (Les demoiselles de Rochefort, 1967), Pele de asno (Peau d’âne, 1970) e Um homem em estado interessante (L’évènement le plus important depuis que l’homme a marché sur la lune, 1973) completam a lista de parcerias, sendo este último o encontro entre a atriz e Marcello Mastroianni, com quem viria a ter Chiara, a qual também abraçou a profissão e com quem Deneuve também já contracenou algumas vezes, incluindo o recente Bem amadas (Les bien-aimés, 2011), que se propõe exatamente uma releitura de Os guarda-chuvas do amor. Aliás, a atriz foi ganhando muita experiência com os musicais ao longo de sua carreira, tendo sido escalada por realizadores de calibres diversos para entoar melodias com sua voz aveludada e, a depender da personagem, sensual. Especificamente nessa sua primeira parceria com Demy, ela esbanja juventude e carisma, e consegue transitar sutilmente para a maturidade de Geneviève, que chega após alguns anos como resultado da sucessão de desventuras iniciada pela partida de Guy. O termo “genial”, tantas vezes banalizados por cinéfilos adolescentes ávidos de impor sua visão de cinema, cabe perfeitamente a esse musical que não abre mão de sua essência de desenvoltura magnética que demonstra o passar dos anos como um depurador do pensamento.

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