No decurso do tempo e a busca por novos rumos


O fascínio de Wim Wenders pela estrada é tamanho que rendeu uma trilogia intitulada On the Road. Ela foi aberta com Alice nas cidades (Alice in den Städten, 1974) e continuada com Movimento em falso (Falsche Bewegung, 1975). No decurso do tempo (Im Lauf der Zeit, 1976), o mais longo dos três, encerra a trilogia com muita propriedade e, a exemplo de seus predecessores, narra uma bela história de amizade e traz Rüdiger Vogler em um dos papéis principais. Do começo ao fim, a trama é conduzida com muito despojamento, e sua beleza brota dos improvisos e das pequenas ocorrências do cotidiano, evidenciando a habilidade do diretor em abordar seus temas prediletos com verossimilhança. No foco da narrativa, estão Bruno Winter (Vogler) e Robert Lander (Hanns Zischler). O primeiro é um projecionista itinerante cuja habitação é o mundo e que faz questão de se manter assim. O segundo acabou de se separar da esposa e não parece muito inclinado a superar tão rápido o episódio.

Antes que ambos se conheçam, Wenders oferece uma espécie de prólogo para a história ao colocar na tela o diálogo entre Bruno e um senhor que já exerceu a mesma profissão que ele no passado. Em breves palavras, eles debatem sobre o futuro do cinema e as perspectivas do idoso são bem pouco otimistas. Desde então, o componente mtalinguístico está plenamente inserido na obra, algo que o realizador tornaria a fazer anos mais tarde em filmes como O estado das coisas (Der Stand der Dinge, 1982) e O céu de Lisboa (Lisbon Story, 1994) e que firmaria como uma de suas temáticas recorrerentes. Ao diálogo inicial dos personagens na sala de projeção, segue-se o encontro entre Bruno e Robert, que se dá em circunstâncias inusitadas e forma uma sequência muito bem pensada. Em seu caminhão, Bruno desperta para mais um dia na estrada e olha o horizonte distante à sua frente. Ele desce do veículo e continua contemplando a natureza completamente despido. Por mais gratuita que pareça, a nudez do projetista é altamente simbólica, pelo que traz de expressão de sua liberdade para ir, vir e ser como bem entende.

Então, um carro em alta velocidade avança em direção ao rio situado em frente ao local onde Bruno estacionou seu caminhão, e o motorista submerge nas águas juntamente com o automóvel para, em seguida, voltar à superfície e abandoná-lo. Bruno percebe que se tratava de uma tentativa frustrada de suicídio e então conhece Robert, que vem ao seu encontro e, dali em diante, compartilhará com ele momentos prosaicos na estrada. A amizade entre os dois é fruto de uma pequena e importante casualidade, e floresce em meio aos acontecimentos simples do dia a dia, bem como à falta delas. De um modo geral, as conexões interpessoais inesperadas de Wenders são bem arquitetadas e esculpidas com toques de cotidiano e leves obliterações, assim como acontece em No decurso do tempo. A tal grandeza presente no título é também uma protagonista da história. O roteiro, concebido pelo próprio diretor, é pródigo em examinar o tempo que es esvai, o tempo que cura as feridas antigas e produz novas, o tempo que permite a meditação e a maturidade, o tempo que sedimenta relacionamentos, o tempo que transcorre por causa da nossa própria insistência em medi-lo e tomá-lo como algo inerente à natureza, quando, na verdade, é uma mera convenção. Esses pensamentos pulsam a partir da convivência consentida entre Bruno e Robert, talhada com base em uma brilhante fotografia em preto e branco.



As viagens dos protagonistas pelas estradas também traz à tona a questão da incomunicabilidade que tanto aflige os seres humanos, da qual os personagens não escapam. Os pequenos ruídos de comunicação entre ambos responde pela oscilação na sua proximidade, assim como acontece com amigos cuja relação sofre ranhuras, ainda que imperceptíveis a olho nu, a cada vez que uma dissonância importante se concretiza. Nesse sentido, a abrangência de No decurso do tempo é enorme, por nos deixar entrever na lenta caminhada de Bruno e Robert algumas das nossas idiossincrasias mais veladas, ainda que, mesmo no filme, elas não apareçam escancaradamente. Wenders aposta nos silêncios e nos olhares que comunicam em parte e sublinham a angústia da procura por um interlocutor. A amizade entre Bruno e Robert é como um pálio de luz que se abre sobre eles e está circunscrita a um arco de tempo específico. Enquanto o tempo não finda, eles conhecem um pouco sobre o outro e um pouco sobre si mesmos. Trata-se de um vínculo que surge tão de improviso quanto se fortalece em pouco tempo, o que nos leva a considerar que uma amizade nem sempre demanda longos anos para ser construída. E, em meio ao percurso espaço-temporal dos protagonistas, o diretor apresenta alguns dos ícones mais recorrentes dos road movies, corroborando sua proposta de apropriação de conceitos e práticas cinematográficas tipicamente americanas que caracteriza boa parte de sua filmografia.

No decurso do tempo é permeado por uma trilha sonora vibrante e memorável, composta de muitas baladas de rock, que evoca lembranças, ponderações e aspectos banais da realidade, perfeitamente assimiláveis pela narrativa, que é capaz de produzir enlevo e incômodo ao longo de suas quase 3 horas de duração. É realmente lamentável que boa parte das plateias não esteja mais disposta a investir todo esse tempo diante de uma tela de cinema. Entretanto, aqueles aos quais essa característica do filme não gera intimidação ou enfado, está assegurada uma bela experiência. Wenders extrai beleza da banalidade, é um vate do cotidiano, e não see furta de inserir até mesmo a vulgaridade que o compõe. Fatos simples ganham dimensões épicas aqui e a história vai se formando a partir de pequenos achados, como a cena em que os protagonistas encenam uma briga desastrada para um grupo de crianças que não tem a que assistir depois de um problema na projeção de um dos filmes. Elas veem apenas as sombras dos dois e ouvem o som de uma canção, formando um espetáculo sonoro e visual equivalente a um filme de verdade. Em seus contatos, os personagens vivenciam o encontro, a separação, o reencontro e uma nova separação. Em determinado momento, Robert se dá conta de que a estrada nunca será um local de permanência, enquanto Bruno prefere seguir reafirmando a sua condição de andejo, levando o filme para perto de seu epílogo. O realizador, mesmo que se valha de insígnias um tanto surradas devido ao tempo, consegue manter o filme com uma levada autoral e despojada, concebendo as suas próprias garatujas através dos personagens, que ganham vida graças aos seus intérpretes, cujo trabalho demonstra o quanto são inegavelmente talentosos. E os grandes coadjuvantes dessa odisseia são o Tempo e o Cinema, espargidos em Bruno, Robert e nas estradas de mil bifurcações, interseções, paralelos e círculos.

Comentários

Postagens mais visitadas