Down by law: entre ir, vir, chegar e partir


Personagens em trânsito são o forte da filmografia de Jim Jarmusch, bem como algumas decorrências de encontros de culturas. Assim o é em Down by law (idem, 1986), seu terceiro exercício de observação aguçada na direção. A trama está centrada, inicialmente, nas figuras apartadas de Zack (Tom Waits) e Jack (John Lurie), dois homens de cotidiano extremamente banal, cujas semelhanças vão além de seus nomes de sonoridade aparentada. As primeiras cenas são uma espécie de preâmbulo da análise meticulosa do diretor sobre cada um deles. E são também uma leve amostra dos diálogos simples e meditativos que viriam a se tornar a sua marca registrada. Como em Estranhos no paraíso (Stranger than paradise, 1984), aqui também Jarmusch abdica das cores e propõe o seu recorte ficcional instigante. O que une Zack e Jack são duas armadilhas que os levam à prisão. Cada um deles vinha levando a vida de modo pacato até que, de improviso, veem-se confinados a uma mesma cela.

É no encontro entre os protagonistas que Down by law reserva suas maiores surpresas. Eles se estranham no começo, discutindo como duas crianças implicantes, mas vão se aproximando aos poucos, como se fosse uma tentativa de minimizar o desconforto da solidão forçada. Como passam a ter somente um ao outro, essa parece a melhor alternativa. Entretanto, uma terceira figura surge e se interpõe entre esse trio: Roberto (Roberto Benigni), um italiano que ainda enfrenta dificuldades com o inglês e comete equívocos divertidos a partir de algumas semelhanças fônicas entre palavras. Roberto é a fagulha de efusão que ilumina o caminho de Zack e Jack, taciturnos e sisudos a maior parte do tempo, mas capazes de esboçar sorrisos de cumplicidade em certos instantes. Nenhum dos três é um poço de virtudes, mas é possível pensar que eles tenham sido vítimas das circunstâncias. Zack, por exemplo, cai na teia de um esquema de corrupção de menores; Jack, um ex-radialista, é apanhado em flagrante quando aceita transportar um carro ignorando a presença de um defunto no porta-malas.

Como bem se afirmou certa vez pela crítica, Jarmusch é um realizador interessado no que acontece às margens da vida. O trio de outsiders de Down by law exprime esse foco. Cada qual à sua maneira, eles exibem carisma e identificação em suas caminhadas pela vida em meio a paisagens menos óbvias dos EUA, mas, nem por isso, menos deslumbrantes. Também por meio de seus protagonistas, ele exercita a sua verve crítica sobre o modo de vida estadunidense, amplificando os aspectos de bizarrice que se encontram circunscritos a certos hábitos. Dos lábios de Zack, Jack e Roberto emanam sacadas bem inteligentes e bacanas sobre a vida em geral. Parece um pouco com filosofia de botequim, mas não deixa de ter a sua validade. E isso transforma o filme em um daqueles títulos que a maioria das pessoas deixa passar na locadora, por já ficar, normalmente, escondido. Tremenda injustiça. Down by law é um pequeno tesouro a ser descoberto e apreciado, que faz pensar que, certas vezes, o que se procura é uma história que exale humanidade e sinceridade sem, necessariamente, incorrer em um discurso pontuado pela erudição – também válido, diga-se de passagem.


Não existem muitas respostas prontas no cinema de Jarmusch. Para ele, é mais interessante se deter em como os personagens chegaram onde estão, sem que, para isso, a princípio, resolvam-se dúvidas do tipo “o quê?” ou “por quê?”, algo que também se verifica em Down by law. O espectador recebe apenas um breve histórico de cada personagem e, em seguida, passa a acompanhar a sua trajetória como quem já pega o “bonde andando”. Como na vida real, o que se conhece do outro é sempre em parte, assim como o que se conhece de si mesmo. E essa parcialidade acarreta, inevitavelmente, dúvidas. São dúvidas irresistíveis, que potencializam o entusiasmo com relação ao filme, resultado de um olhar incomum e clínico de Jarmusch. Seu acerto também está no elenco selecionado. Lurie vinha de uma colaboração imediatamente anterior com ele, e apresenta um encaixe louvável nas idiossincrasias do diretor. Waits, por outro lado, carimbou aqui seu passaporte no mundo jarmuschiano pela primeira vez, também demonstrando grande adequação à trama – ele voltaria a encontrar Jarmusch quase vinte anos depois, em Sobre café e cigarros (Coffee and cigarettes, 2003).

Benigni também se sai muito bem na pele do italiano boa-praça que consegue arrebanhar a dupla de pseudo-mal-encarados que, como ele, cai de para-quedas no ambiente prisional. As gags de seu personagem, que viriam a se tornar sintomáticas em seu cabedal interpretativo, são muito bem-vindas aqui, e despertam empatia. Sobra espaço até mesmo para Nicoletta Braschi, sua esposa na vida real, que surge em uma quase ponta depois que ele foge com seus novos parceiros para o meio da floresta. Aliás, Down by law é composto de três tomos bem demarcados: a breve apresentação do dia a dia de Zack e Jack, o infortúnio de sua prisão por razões que eles desconheciam inicialmente e os desdobramentos da fuga bem-sucedida da dupla, a essa altura um trio com a adição de Roberto. Cada momento exibe seu encanto, e contribui para tornar o filme uma bela comédia dramática dotada de sentimentos e pensamentos pertinentes à teia de ciclos e acasos em potencial de que se compõe a existência humana. Trata-se, enfim de uma obra acerca da improbabilidade de uma amizade entre três homens filtrada com as lascas idiossincráticas de um realizador que tem um olhar todo seu para o cruzamento de culturas, cuja nuvem de proximidade é dissipada em um posfácio poético.

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