Equilibrando o medo e a inovação em As harmonias de Werckmeister


Uma busca ao dicionário permite descobrir que harmonia é um caso típico de vocábulo polissêmico, isto é, que apresenta várias significações. Quando se fala em harmonia, pode-se estar falando de proporção, de uma ordem que agrada os olhos, em um sentido mais amplo. O vocábulo também tem aplicação na área musical, e designa o conjunto de sons de que o acorde musical é formado, além de se referir à arte de ordenar esses sons. Em se tratando de pessoas, a harmonia pode ser um sinônimo de conformidade, coerência e concórdia. E, de alguma maneira, cada uma dessas acepções da palavra pode ser identificada em As harmonias de Werkmeister (Werckmeister Harmóniák, 2000), um grande achado na carreira do húngaro Béla Tarr, cujos filmes são portentosos exercícios de observação paciente.

Composto por apenas 39 planos-sequência, o longa-metragem aborda discussões filosóficas por meio de figuras que permanecem ocupando a mente do público por um longo tempo. O lugar citado no título é uma pequena cidade que vem sendo castigada pelo rigoroso inverno húngaro. Nota-se que é uma região que parece estática no tempo. Aquele lugar tão pacato e gélido ganhará certa movimentação quando da chegada de uma trupe de artistas de circo que trazem uma enorme baleia empalhada, fato que logo desperta a curiosidade de muitos moradores locais. O misterioso animal recebe a alcunha de "O Príncipe", e as reações tidas pelos habitantes oscilam entre o fascínio, a desconfiança e a inquirição. Mesmo os que aparentam indiferença ao fato escondem uma certa inquietude diante de seu surgimento.

O início de As harmonias de Werkmeister nos apresenta a carismática figura de János (Lars Rudoplh), um jovem que exerce uma certa influência sobre a cidade e que traz reflexões sobre a vida e a natureza de modo bastante peculiar. Em uma bodega, ele aponta para alguns senhores como a movimentação da Terra se relaciona com as vidas dos habitantes do planeta, bem como sua associação aos movimentos do Sol. Aos poucos, o rapaz vai envolvendo aqueles idosos em uma espécie de dança cósmica que suscita inicialmente uma grande adesão de todos, mas que, logo, passa a ser encarada como uma tentativa de János de desestabilizar e desorientar a cada um ali, o que resulta em sua expulsão do estabelecimento. Essa primeira sequência permite perceber que a convivência do protagonista com a comunidade local não é tão simples, e que muitos naquela cidade são dados a certos rompantes. János enfrente diariamente o senso comum de sua cidade, e caminha na contramão dessa perspectiva o tempo todo. Não por acaso, ele é o mais interessado e o mais atingido pela baleia, a qual quer conhecer e entender. É interessante observar que o encanto que ele sente pelo animal empalhado vem antes até de seu entendimento, que nunca vem, por sua vez, inteiro. É a prova de que se pode amar mesmo o que não se entende.



Conforme já se antecipou, Béla Tarr é um diretor com um estilo todo particular de filmar, que respeita silêncios e vazios e faz de seu cinema um espaço para longas contemplações. Os 145 minutos de As harmonias de Werckmeister demoram muito a passar, mas cada um deles parece bastante necessário para a sua proposta, que também se vale de uma estonteante fotografia em preto e branco que reveste todo o filme de um espectro legendário e sublinha o caráter enigmático que ele apresenta. Se de um lado temos uma certa grandiloquência no que tange à duração do filme como um todo e de cada plano, de outro temos uma notável economia de diálogos, que surgem como lampejos ao longo da caminhada lenta apresentada pelo diretor. Aquela experiência provocada por János no começo do filme é um desses instantes de iluminação que o filme propõe, assim como é uma dessas raras ocasiões em que ele se dirige verbalmente a alguém, e alguém se dirige a ele. Sua ideia também é fruto de sua paixão pela astronomia, e sua mobilidade pelo espaço citadino também é possível pelo fato de ele ser carteiro no lugar. János é uma figura interessante sob esse e outros ângulos, e se firma como um signo de resistência à apatia e ao excessivo conformismo que parecem acometer tanta gente naquele lugar.

O homem de Béla Tarr é um animal político, o "zoon politikon" apresentado por Aristóteles. Assim o é no filme em questão, que aborda a necessidade de filiação a alguma corrente de pensamento, bem como apresenta incisivos movimentos de derrubada orquestrados por uma fatia revoltada da população local. A cena é uma das mais impactantes de todo o filme, e apresenta toda a força do cinema do diretor. Com uma trilha sonora discreta e suficientemente participativa ao mesmo tempo, a sequência traz uma horda de inconformados que quer trazer profundas transformações ao lugar e se opõe à presença dos artistas circenses ali. Contudo, em dado momento eles se deparam com um senhor vulnerável e decrépito, a quem não têm coragem de atacar. Mas até que ponto existe revolução na proposta daqueles homens? Eles não estariam sendo, na verdade, reacionários que se valem da força bruta para ameaçar, intimidar e reprimir tentativas de saída do ordinário? Aquela baleia traz o extraordinário para a cidade, e muitos não sabem o que fazer para lidar com ela. Pode se erguer daí uma interessante questão: quais são as baleias que temos carregado? Que tipo de problema, ainda que grande e notório, estamos tentando esconder? E todas essas pessoas estariam confinadas a preceitos e dogmas inquestionáveis, dos quais não podem escapar?

Há muitas reverberações reflexivas presentes e decorrentes de As harmonias de Werckmeister, que é daqueles filmes que enredam o público e o coloca diante da necessidade de correlações com as referências individuais e ao conhecimento de mundo constituído em cada um. A associação mais corriqueira que se faz com seu cinema é a que o compara a Andrei Tarkovsky, lembrado e celebrado por títulos como O espelho (Zerkalo, 1975) e O sacrifício (Offret, 1986). Este último é rechaçado por Tarr, assim como os outros trabalhos do diretor realizados fora de sua Rússia natal. O fato é que verdadeiramente existem aproximações possíveis entre as obras de ambos, que se calcam em uma dimensão temporal psicológica e desafiam o público com seus enredos que trafegam por vias enigmáticas, além de apresentar uma certa observação religiosa dos fatos e dos seres. O homem, para eles, é admitido em sua acepção cósmica e religiosa, ainda que não se valha disso de forma apologética. Independente de quais sejam as cartas de intenções de cada um deles, porém, suas obras escapam às suas mãos e aos seus domínios, não podem ser represadas em chaves de leitura únicas e eternas.

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