16 anos de paixão por cinema em 16 temas

O ano de 2018 já está em seus últimos dias, e antes de apresentar minhas seleções de preferidos entre os lançamentos, não poderia deixar de trazer mais um artigo comemorativo da passagem de mais um ano como apaixonado pelo cinema. Em anos anteriores essa publicação especial foi feita em abril, mas dessa vez ela só aparece agora por causa de dois grandes fatores: o tempo escasso preenchido com os filmes em si e não com textos sobre eles e a profunda indecisão quanto ao tema que pudesse resultar em 16 itens para aludir aos 16 anos de cinefilia. Enfim, antes que nos despeçamos de 2018, consegui decidir sobre o que comentaria. 

Olhando para os artigos precedentes, vi que poderia fazer algo parecido com o que fiz em 2015. Naquele texto, apresentei 13 listas baseadas em 13 temas, e hoje trago uma lista de 16 itens que representam 16 temas distintos. Descartei os temas que já havia apresentado à época e fui atrás de outros, resgatando trechos de críticas que já havia escrito e produzindo parágrafos inéditos, uma mescla que me ajudou a ganhar tempo, porque produzir um texto como esse dá uma trabalheira imensa: envolve as escolhas e também a redação. Talvez alguns sintam falta de determinados filmes na seleção, mas os escolhidos não são necessariamente meus preferidos sobre cada tema, mas títulos que eu ainda não tinha usado em listas anteriores sobre temas nos quais eles já couberam. E assim nasceu mais um artigo especial para celebrar uma paixão antiga.

1. AMIZADE FEMININA

Já estou com saudades (Catherine Hardwicke, 2015)


A temática da amizade me atrai bastante, tanto que trouxe não apenas um, mas dois filmes a respeito, e o representante feminino é uma linda comédia dramática sobre duas amigas que enfrentam os altos e baixos de uma relação longa, que atravessa dificuldades e se solidifica à medida que elas passam. Na pele das protagonistas, as adoráveis Drew Barrymore e Toni Collette, esta segunda respondendo pelo drama da narrativa. A amizade das duas é posta à prova mais do que nunca quando uma delas é diagnosticada com câncer e depara com a certeza mais próxima da finitude da vida e desperta na outra o sentimento do título por antecipação. O roteiro sensível de Morwenna Banks e a direção de Catherine Hardwicke deixam de fora o sentimentalismo barato e mostram personagens pé no chão, que também precisam lidar com questões práticas da vida. Entre risos e lágrimas, o longa faz um carinho agradável e necessário no peito.

2. AMIZADE MASCULINA

Truman (Cesc Gay, 2015)


É bem verdade que a premissa de Truman já foi usada e reciclada inúmeras vezes não somente no Cinema, mas nas artes em geral. Houve quem postulasse que todas as histórias, no fim das contas, são sobre amor e morte. E aqui também existe muito amor: amor de amigos, que trocam carinhos e palavras carinhosas, que se abraçam e têm intimidade suficiente até para chamar um ao outro de idiota, sobretudo naqueles dias em que as coisas não vão muito bem e acabamos por nos exceder no mau humor, mas o amigo entende que tal reação é coisa de momento e logo tudo passa. A amizade é maior do que as pequenezas e as mazelas a que todos nós somos suscetíveis. Não conhecemos muito da vida pregressa de Julián (Ricardo Darín) e Tomás (Javier Cámara), porém o que vem à tona é suficiente para saber que eles estreitaram bastante os laços. A insistência de Paula (Dolores Fonzi), prima de Julián, contribui para que Tomás visite o amigo e, ao longo de quatro dias, eles vão tentar desfrutar ao máximo da companhia um do outro.

3. ATRIZ FORA DE SUA LÍNGUA MATERNA

Um sonho de amor (Luca Guadagnino, 2009)


Não se pode negar que Tilda Swinton seja o corpo e a alma de Um sonho de amor. Seu envolvimento com a produção foi tamanho que seu nome também figura nos créditos como produtora. O projeto de filmar o longa era uma vontade antiga, tanto dela quanto de Guadagnino, que dirigiu 100 escovadas antes de dormir (Melissa P., 2005) enquanto captava recursos para rodar o filme em questão. Valeu a pena tanto investimento. Depois de anos de espera, o público ganhou de presente um filme que, em todos os aspectos, apresenta qualidades inenarráveis. Swinton é a primeira dessas qualidades. Sua desenvoltura com o italiano é notória aos que dominam o idioma, e ela ainda é capaz de produzir frases em bom russo. Para ambos, teve de estudar continuamente, e seu esforço resultou em um trabalho de composição incrível, além de seu biotipo extravagante que ajuda a envolver sua personagem em uma aura de doce mistério. Antonio se torna aparvalhado depois de conhecê-la, e quer, cada vez mais, conhecer aquela mulher.

4. DIRETORA

Desejo e obsessão (Claire Denis, 2001)


Já destaquei outros dois filmes assinados por Denis em listas anteriores, uma delas o artigo de 12 anos de cinefilia e outra um balanço mensal. Os escolhidos foram, respectivamente, O intruso (L'intrus, 2004) e 35 doses de rum (35 rhums, 2008), pelo que eu dessa vez me decidi por Desejo e obsessão, longa ao qual fiz duas visitas e com o qual me envolvi mais na segunda. O adjetivo sensorial ganha extrema força em seu cinema, como acontece nessa história que, se observada somente a partir de sua sinopse, pode ser tomada como um conto sobre uma canibal e um ninfomaníaco. Mas Denis vai além disso, e transforma o drama de dois marginais em uma balada minimalista - pelo que economiza de palavras e transborda em sons musicais e silêncios de seus protagonistas, encarados com vísceras por Béatrice Dalle (cujo biótipo excêntrico a torna praticamente nascida para o papel) e Vincent Gallo, de aura arredia e também perfeitamente encaixado ao personagem. O título original da obra é bastante sugestivo, e traduzido é: Problema todo dia. O texto revelou pouco? Em se tratando de Denis, menos é mais.


5. DOCUMENTÁRIO



Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007)


Nada do que se vê acontecendo em Jogo de cena é tão simples como aparenta. Inicialmente, um espectador mais incauto pode acreditar que são apresentadas apenas conversas sobre assuntos corriqueiros, como acontece e, tantos outros documentários. Mas o filme (?) é muito mais do que isso. Para começar, há apenas mulheres em cena, resultado de um garimpo feito pelo diretor ao longo de algumas semanas. Ele colocou um anúncio no jornal convidando mulheres de todas as idades para contar suas histórias de vida, ou algum episódio específico que as tenha marcado. Essa espécie de entrevista quase sem a intervenção de um interlocutor seria filmada por Coutinho no teatro Glauce Rocha, no centro do Rio de Janeiro. Foram aproximadamente 83 mulheres ouvidas durante meses, as quais tocaram nos assuntos mais diversos.


6. ENSINO

Entre os muros da escola (Laurent Cantet, 2008)


Em várias passagens, Entre os muros da escola, premiado com a Palma de Ouro em Cannes, revela sua força, como quando os alunos ganham voz e explicitam o que pensam de forma categórica. Alguns não sabem muito bem o que querem, mas já descobriram o que não querem. A ação do filme é quase toda passada no ambiente escolar, e é naquelas quatro paredes, sejam as da sala, sejam as da quadra de esportes, que os anseios, angústias, ressentimentos, inseguranças, e também as alegrias e vontades de cada um ficarão nítidas. No fim das contas, o longa serve como um eficiente tratado do que é encarar o desafio de transmitir a um grupo de seres tão distintos entre si algo que possa transformar suas vidas, e lhes garantir um futuro alentador. 

7. INFÂNCIA 

Conta comigo (Rob Reiner, 1986)


"Nunca tive amigos como aqueles que tive aos 12 anos. Jesus, mas quem tivera?!”


Dita por Gordie Lachance (Will Wheaton), a frase acima, tão singela e marcante, encerra Conta comigo e resume a essência de um filme que faz muito por merecer um lugar especial no coração cinéfilo ou simplesmente daqueles que têm amigos - todas as pessoas que existem, provavelmente. Algumas amizades podem não ser para a vida toda - pelo menos, não presencialmente -, mas o sentimento fica, e relembrar momentos passados junto com grandes companheiros produz um bem danado à alma. Por meio de uma narrativa em flashback, somos transportados pelo discurso do Gordie adulto ao início de sua adolescência, que passou, em boa parte, com Chris (River Phoenix), Teddy (Corey Feldman) e Vern (Jerry O'Connell), garotos como tantos outros, com seus 12 anos, hormônios em início de ebulição e uma boa dose de intrepidez. São os personagens centrais de uma obra que toma por base um conto de Stephen King, que tem na amizade uma de suas especialidades e recorrências temáticas. 

8. LEÃO DE OURO EM VENEZA

O estado das coisas (Wim Wenders, 1982)



A primeira sequência de O estado das coisas já dimensiona o espectador naquele mundo ilusório que o cinema é capaz de criar. Um grupo de personagens caminha por espaços abertos e claríssimos, e o tempo em que eles estão parece o futuro, o que também se denuncia pelas roupas que usam. Nos minutos seguintes, percebe-se que aquele é o filme dirigido por Friedrich, que grita “Corta!” e suspende a interpretação daqueles atores. Mais adiante, descobrir-se-á que a produção desse filme está envolta em circunstâncias adversas, que delineiam um percurso na corda bamba que pode ser lido como uma tragédia do próprio cinema. A postura de Wenders diante da história que entrega é a de dramaticidade profunda, numa fusão de discurso metalinguístico com uma análise do tédio que atravessa a condição humana. As dificuldades enfrentadas por Friedrich (Patrick Bauchau), de certa maneira, sintetizam a caminhada penosa que um artista pode enfrentar.

9. PAI E FILHO

As invasões bárbaras (Denys Arcand, 2003)


Estirado sobre o leito de morte, Rémy é visitado pelos amigos de uma vida inteira e rememora antigas ideologias caídas, sonhos desfeitos, planos fracassados. Sua existência, porém, não é assinalada somente por derrotas: a passagem dos anos também lhe permitiu construções de base invisível e essenciais a qualquer ser humano: os laços. Sejam de amor, sejam de amizade, eles são o envoltório e o sustentáculo que o fazem querer permanecer neste mundo, arremessando-o em uma luta inglória contra a própria finitude, acelerada pelo avanço de seu câncer. E, em meio a esse processo de erosão corpórea, o protagonista é confrontado com o espelho invertido no qual se reflete o único filho, que remete aos laços familiares e cuja relação tumultuada pelas fortes divergências, sobretudo de ordem política, clama por trégua. Brilhantemente dirigido por Denys Arcand, As invasões bárbaras excede o caráter denotativo de seu título e aponta para a inevitabilidade do fim, ante ao qual picuinhas e mazelas se tornam pequenas demais, dignas de um bolso furado. Verborrágico até a medula, o longa é um tratado sobre a milenar lei da semeadura, aplicável a qualquer uma de nossas ações, e uma constatação de que o tempo não pode ser trapaceado.


10. PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

O grande ditador (Charles Chaplin, 1940)


Foi um ato e tanto de coragem de Charles Chaplin ter dirigido O grande ditador em plena era fascista, contando a história de um tirano cuja ascensão começa ainda na Primeira Guerra Mundial e avança até o segundo conflito. Seu nome, Adenoyd Hynkell, remete facilmente a um certo nazista austríaco, incapaz de aceitar quaisquer diferenças e impondo sua vontade na base da ameaça e da completa falta de diálogo. Até então, Chaplin tinha um histórico de comédias físicas com muitas trapalhadas e já havia se firmado como o rei do riso com coração, e O grande ditador é um ponto de virada em sua carreira, levando-o a um novo patamar de reflexão, ilustrado claramente no discurso final, um longo monólogo de Hynkell sobre a importância de conviver e tolerar, capaz de produzir lágrimas nos mais sensíveis. E sem qualquer concessão sentimentaloide, habilidade que não é para muitos.

11. RACISMO

No calor da noite (Norman Jewison, 1967)



Já foi comprovado cientificamente há tempos que não existe qualquer diferença do ponto de vista genético entre pessoas cujos tons de pele não são iguais. Entretanto, o preconceito contra os negros ainda é uma realidade. Imagine isso há quase cinco décadas. Na verdade, nem é preciso usar a imaginação, já que No calor da noite está disponível como uma das ilustrações dessa corrente de pensamento perversa, que vem à tona através de dois personagens. Após um crime que tira a vida de uma figura influente de uma pequena cidade, começam as investigações para descobrir o culpado, e logo a suspeita recai sobre Virgil Tibbs (Sidney Poitier), um detetive negro que estava de passagem por ali. Um policial encontra o corpo estirado na rua em plena madrugada e, ao fazer uma ronda pela estação de trem, encontra o tal detetive e o revista aos gritos, como se o assassinato estivesse praticamente resolvido. 

12. REFILMAGEM

Longe do paraíso (Todd Haynes, 2002)


Belamente fotografados por Edward Lachman, os personagens de Longe do paraíso demonstram o quanto pertencem à época em que o filme se ambienta. Nos distantes anos 50, uma dona de casa vê seu mundo ruir ao descobrir que o casamento não passa de uma fachada e, ainda assim, é incapaz de colocar um ponto final a essa situação constrangedora. Falta-lhe, sobretudo, a coragem para assumir um fracasso e se aproximar como gostaria do jardineiro negro da família, com quem travar um simples diálogo já escandalizava o suficiente as amigas fúteis que marcavam presença em suas reuniões elegantes. Até ali, não havia escapatória ao alcance dos olhos para uma mulher como Cathy Whitaker, vivida por uma irrepreensível Julianne Moore, atriz que o Oscar esnobou em favor de Nicole Kidman, ainda que esta tenha vencido por méritos. O realizador Todd Haynes presta o seu encantador tributo a um dos mais conhecidos melodramas de Douglas Sirk (Tudo que o céu permite), que Rainer Werner Fassbinder (O medo devora a alma) já havia revisitado, e apresenta um tocante ensaio sobre aparências que escondem desejos sufocantes de almas entregues à agonia de querer.


13. SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Vá e veja (Elem Klimov, 1985)


A estrutura de Vá e veja é relativamente simples, mas, nem por isso, deixa de impactar. Lá pelo segundo terço do filme, o diretor Elem Klimov abdica de uma narrativa ortodoxa para transformá-lo em uma colagem perturbadora de imagens da guerra. Através dessa escolha, tudo nos espanta, nos impacta e nos inquieta. O filme exige um espectador forte, que seja capaz de resistir a experiências viscerais. Mas que fique bem claro: não se trata de um espetáculo sádico pontuado por banhos de sangue. Acima de tudo, Vá e veja é um manifesto incisivo de alto teor político contra a barbárie, que apresenta traços marcantes de violência com espasmos de denúncia social. Bem no começo, Klimov hasteia a sua bandeira e a mantém constantemente arvorada, a fim de explicitar o desespero e a desesperança que acomete toda uma população. A figura de Florya (o protagonista) é sinedóquica, pois sintetiza em si uma nação afrontada pelo confronto armado e que, com isso, tem seu bem-estar e sua luta cruelmente esmagadas.

14. SUNDANCE

(500) dias com ela (Marc Webb, 2009)


(500) dias com ela ainda tem outros diferenciais em relação à maioria das comédias românticas que aportam nos cinemas ano a ano. O próprio rótulo de comédia romântica é limitador, pois Webb vai muito além de qualquer fórmula, apresentando uma história completamente verossímel e a milhas de distância de qualquer chavão presente em outros exemplares do gênero. A escalação de Joseph Gordon-Levitt é um exemplo. O ator não é um modelo de beleza do qual se alimentam as comédias, o que o faz de seu Tom um garoto que pode ser qualquer um de nós. E Summer, apesar de linda, parece-se com qualquer garota de coração gélido que nos despedaça por sua inatingibilidade quando ainda somos meninos sonhadores. Sua convicção prática sobre as relações amorosas são baldes de água fria que ela joga o tempo todo no pobre Tom. Mas, antes que se pense que Webb se utiliza de misoginia, o retrato de Summer é bastante gracioso. Cruéis são suas atitudes.

15. UM ÚNICO DIA

Antes do pôr do sol (Richard Linklater, 2004)


Nos lábios dos protagonistas, cada frase é um sopro de espontaneidade, um mérito da escrita verossímil de Linklater, que contou com a colaboração de Hawke e Delpy no roteiro. A palavra é entronizada em Antes do pôr do sol e exibe sua polivalência: revela desejos, desfaz enganos, acaricia por metáforas, galvaniza sentimentos. A cada passo adiante pelo entardecer parisiense, uma nova confissão, um novo detalhe evidenciado. E a beleza, por vezes dura e cruel, dessas palavras, casa perfeitamente com a fotografia de Lee Daniel (não confundir com o diretor de Preciosa – Uma história de esperança), colaborador recorrente do cineasta, que captura os matizes de uma cidade que tão bem faz jus à sua correlação com a paixão e o romantismo. Entusiasmados pela presença concreta um do outro, Jesse e Celine fazem o máximo que podem para adiar a nova despedida: ele a convida para acompanhá-lo no carro que o levará ao aeroporto e, assim ganharem alguns minutos. Dentro do veículo, Celine extravasa seu grande desconforto por ter vivido os últimos anos em forte expectação pelo romance com Jesse. A essa altura, ambos já foram longe demais em seus desejos. 

16. URSO DE OURO EM BERLIM

Morangos silvestres (Ingmar Bergman, 1957)


Os filmes do cineasta evocam todo tipo de discussão: filosófica, existencial, psicanalítica. A preocupação aqui não é enveredar por nenhum desses caminhos, mas apenas descrever o êxtase gerado pela contemplação de pequenas epifanias de alguém que já percoreu uma extensa trajetória, o que Bergman faz como poucos. Ele desnuda o humano, expondo suas fragilidades, tendo a câmera como cúmplice. É como se, em certa medida, o espectador também fosse desnudado, a partir da identificação que tem com as cenas apresentadas. São esses fatores que, somados, dão beleza, graça e vitalidade a Morangos silvestres. É cinema autoral, que não se faz preocupado em arrebatar grandes plateias, e que deleita olhos enfadados de efeitos visuais escalafobéticos. Um cinema que se faz sem traço algum de maniqueísmo, sem a preocupação de se colocar um herói e seu antagonista. 

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