A vida em pleno acontecimento ou Um pombo pousou num galho refletindo sobre a existência

Retinas adestradas ao frenesi, bem como cérebros lobotomizados por longos períodos de exposição a sequências nascidas de roteiros mastigados dificilmente conseguem aderir à experiência de alto rigor formal e filosófico idealizada por Roy Andersson em Um pombo pousou num galho refletindo sobre a existência (En Duva Satt på en Gren och Funderade på Tillvaron, 2014). O título extenso é outro elemento que afasta as grandes plateias, além de revestir a produção de uma aura enigmática. Tais constatações se emitem com pesar, já que, ao contrário do que os índices mencionados sugerem, o filme fala de todos nós, apenas não escolhe o caminho mais óbvio para essa proposta. Ao longo de pouco mais de 100 minutos, o espectador é apresentado a 39 planos fixos e antinarrativos, por assim dizer. Cada um deles é um fragmento da existência. 

À estaticidade da câmera se junta uma caraterização fantasmagórica dos personagens. É bem verdade que os suecos, em sua maioria, já têm pele alva por natureza, mas a maquiagem usada aqui os embranqueceu ainda mais. É como se fossem defuntos ainda de pé, e alguns deles acabam se tornando defuntos de verdade logo nos primeiros planos, os únicos que receberam título: Encontro com a morte nº 1, 2 e 3. Do início ao fim, as cenas reúnem desde aspectos corriqueiros da vida humana até momentos de genuíno surrealismo, evidenciando uma abordagem apartada de qualquer objetividade, a vocação da arte, afinal. Por mais surreal que sejam as cenas, porém, cada uma delas é passível de identificação pelo que trazem de sentimentos universais: dor, mágoa, esperança, tristeza, carinho. Sem falar na melancolia escandinava, um modo de encarar a vida que parece tipificar os habitantes daquela região do globo.

Andersson é um cineasta de poucas concessões. Seus filmes exigem paciência e concentração, especialmente os três últimos, componentes de uma tríade que versa sobre “o que é ser um humano”. Entre sua estreia em longas, Uma história de amor sueca (En kärlekshistoria, 1970), e seu segundo trabalho, Canções do segundo andar (Sånger från andra våningen, 2000), houve um hiato de 30 anos. Entre cada exemplar da trilogia, decorreram 7 anos, intervalo intencional ou não que resultou em filmes que o colocam na condição de “cinefilósofo da contemporaneidade”, um misto de honraria com fardo ao qual ele tem correspondido bem. Comentar sobre uma possível sinopse do filme em análise é um tanto inútil, dada a natureza do projeto. O mais próximo de uma unidade narrativa encontrado no filme é a presença de dois vendedores desengonçados que oferecem produtos supostamente divertidos em vários estabelecimentos. Mas eles não estão ali para explicar nada: antes, são um notável recurso irônico do roteiro do próprio Andersson – homens tristes demais para convencer alguém a comprar, entre outras coisas, um saco de risadas.


Com todas essas características insólitas reunidas, Um pombo pousou num galho refletindo sobre a existência conquistou o júri do 71º Festival de Veneza, de onde saiu agraciado com o Leão de Ouro. Decerto, alcançou a plateia de eleitores do Lido por sua capacidade de ir além do óbvio e, ao mesmo tempo, ser tão ordinário, um paradoxo difícil de obter. Entrevistado por um site inglês, ele expressou a satisfação de ter tido sua produção bem recebida: “Estou feliz sobre como isso terminou”, e acrescentou, com simplicidade oriunda de longa experiência, a motivação de construir filmes cujo traço humorístico se funde ao trágico: “Nós somos criaturas vulneráveis, e é possível olhar para nós com tristeza, humor ou medo”. Tamanha lucidez e senso de humor diante da vida corroboram o seu talento como realizador, ao mesmo tempo em que geram lamentação por suas longas férias entre um filme e outro. Ao mesmo tempo, parece que tal demora permite um tempo maior de maturação de ideias e concepções maravilhosamente entregues a um público ao qual se pede, sobretudo, calma e atenção.

Lá pelas tantas, Andersson também pondera sobre o lado horrível do ser humano, cujo comportamento belicoso já produziu desgraças de imensas proporções no mundo contra outros seres humanos. A “máquina de destruição” apresentada em um dos planos é a simbologia desse pensamento, e sua coloração de ouro envelhecido é sublinhada em meio à paisagem cinérea. E o que dizer dos dias que estão passando cada vez mais rápido, em boa parte devido à ritmo veloz imposto por um sistema capitalista que produz escravos do lucro? Um homem questiona, a certa altura, sobre o dia da semana em que está, e outro o repreende, enfatizando que ele “precisa saber que hoje é quarta-feira”. Não há tempo para elucubrações, elas desandam o mundo. E, frequentemente, os quadros delineados pelo olhar arguto do cineasta apresentam suas imagens mais importantes nas zonas periféricas. Eis mais um convite do seu cinema: agucem a visão.

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