Sob a pele e os dilemas de existir em um corpo mortal

“Eu não queria estar na pele dela numa hora dessas”. Provavelmente, todo mundo já disse essa frase uma vez na vida, e ela costuma vir acompanhada de um alívio interno que, em última instância, é reflexo de um egoísmo perante o sofrimento alheio. A protagonista de Sob a pele (Under the skin, 2013) experimenta um mundo de sensações uma vez que se reveste todo o seu corpo com esse que é o maior órgão do corpo humano. Alienígena vinda de um planeta desconhecido, seu exterior é belo e atraente – o papel foi entregue a Scarlett Johansson, mas ela pouco ou nada sabe a respeito da condição humana, e esse é fio condutor do longa-metragem de Jonathan Glazer, de cujo currículo pregresso constam apenas dois títulos: Sexy beast (idem, 2000) e Reencarnação (Birth, 2004). 

Após um hiato de nove anos, o realizador inglês adaptou o romance homônimo de Michel Faber, dividindo a responsabilidade do roteiro com Walter Campbell, e concebeu um filme essencialmente imagético, atravessado por elipses que o transformam em uma espécie de iguaria a ser degustada. Entretanto, não é para todos os gostos. Trata-se de um típico “ame ou deixe-o”, na linha do que alguns diretores fazem ao longo de suas carreiras. Ao praticamente abrir mão de um eixo narrativo, concentrando-se “apenas” nas experiências sensoriais do ser de outro planeta (nomeada Laura nos créditos), Glazer fez de Sob a pele um exercício de observação paciente que não menospreza a inteligência de sua plateia, abrindo-se a leituras e preenchimentos diversos, como cabe aos grandes filmes. Entre as conclusões possíveis, está a de que Laura é muito mais próxima de nós do que pode parecer, na medida em que enfrenta a complexidade humana tentando entender todas as implicações que isso traz.

Entre espectadores e críticos, levantaram-se comparações entre o que Glazer faz e a oferta de uma experiência introspectiva usualmente praticada por cineastas como Andrei Tarkovsky e Michelangelo Antonioni. Há um certo exagero em tais comentários, mas eles não são de todo descartáveis. Como o diretor russo, ele apresenta imagens alegóricas; como o italiano, mergulha no silêncio. Todavia, constrói outros signos que não o mantêm atrelado a esses grandes referenciais pregressos, e deixa respirar e arrefecer segundo a perspectiva do espectador/experienciador. Quando atrai suas vítimas ao que parece um ritual de acasalamento, desfila sua em um cenário completamente negro, e essa ausência total de elementos cênicos faz lembrar Dogville (idem, 2003), a cidade inteiramente sugerida que dá nome ao filme de Lars Von Trier. É um misto de ficção científica e suspense, e a trilha sonora de Mica Levi – compositor estreante na função em Cinema – não deixa mentir quando à presença do segundo gênero.


Um outro detalhe muito interessante de Sob a pele é a oportunidade de contemplar Johansson como se houvesse todo o tempo do mundo para isso. Se em Ela (Her, 2013) fomos brindados unicamente com sua voz, emprestada ao programa de computador Samantha, aqui ela enche os olhos do público – sua nudez frontal foi um dos aspectos mais comentados do filme, e surge como parte da experiência de sua personagem enquanto vive sob a forma humana. Sua voz quase não é ouvida, em razão dos pouquíssimos diálogos que trava com interlocutores desconhecidos, daí a predominância de seu visual, dessa vez moreno. É uma história de descoberta, da dificuldade em verbalizar o que se sente, da estranheza diante do mundo, dos caminhos tortos percorridos no relacionamento com o outro, do incerto e do maravilhoso.

Se o Cinema, sobretudo o hollywoodiano, especializou-se em retratar seres de outros planetas como vidas muito mais inteligentes do que nós, Sob a pele vai na contramão dessa perspectiva e inunda a tela com o olhar curioso e perdido de Laura. Não há explicações nem respostas prontas, apenas perguntas que ecoam indefinidamente: por que vir à Terra? Por que escolher apenas homens? Houve um tempo de estudo sobre a nossa espécie antes de chegar? São apenas algumas entre várias indagações que podem assomar no espectador, mas que também podem se diluir à medida que as imagens vão sucedendo. O que está em jogo, para além de quaisquer dúvidas particulares, é a dificuldade que ora se esconde, ora se explicita nessa pele que todos habitamos.

8.5/10

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