Uma vida exposta ao horror em O pianista

Baseado nas doloridas memórias de Wladyslaw Szpilman, O pianista (The pianist, 2002) é uma experiência que confronta a disposição do espectador em testemunhas e suportar injustiças, desumanidade e uma série de conceitos que evocam o que pode haver de mais atroz no mundo. O personagem cuja profissão intitula o filme é interpretado por Adrien Brody - vencedor do Oscar de melhor ator pelo papel -, que confere uma verdade quase palpável ao homem que perdeu seu chão e quase teve a dignidade roubada no ápice da Segunda Guerra Mundial. Judeu e polonês, ele tinha uma vida tranquila, exercendo seu ofício com dedicação e entusiasmo, até que os nazistas, cujo poder se alastrava cada vez mais e estava sintetizado na figura tétrica de Adolf Hitler, chegou ao seu país. 

A partir de então, tudo se transformou para pior, gerando um pesadelo interminável que as lentes de Roman Polanski, responsável pela direção do filme, espiam bem de perto. A solução mais plausível para escapar de um governo antissemita, que sequer permitia a circulação de judeus sobre as calçadas dos bairros, era deixar o país. Mas Wladyslaw não queria considerar essa hipótese, deixando a família aflita com sua resistência em partir, a qual ele justificava afirmando que, quando fosse a sua hora, ele morreria onde quer que estivesse. Esse estilo resignado de encarar a vida talvez explique, mais à frente, a sua grande capacidade em resistir aos horrores que vivencia, o que inclui perder o direito de exercer sua amada profissão e se distanciar cada vez mais da família, além de períodos de fome. A certa altura, a única refeição disponível é um caramelo, vendido a um alto preço, que ele divide com os pais e os irmãos.

Em meio a tanta desolação, O pianista se destaca de outros dramas por não investir em uma tristeza forçada. A direção de Polanski é comedida, e ficar comovido é apenas uma questão de manter os olhos atentos à tela. Não há nem diálogos constrangedores, nem uma trilha sonora insistente para arrancar lágrimas. O simples desenrolar dos fatos é o suficiente para angustiar o espectador, e há uma longa sequência em que ambos os aspectos são deixados de lado em prol da experiência silenciosa de tentativa de sobrevivência do protagonista. É uma escolha acerta do roteiro, vale dizer. Afinal, tiraram todo o som da sua vida, e não lhe resta nada além de recolher as migalhas que encontra pelo caminho. O silêncio só é quebrado por eventuais bombardeios, disparos e gritos cruéis de soldados à caça de pessoas que, aos olhos do nazismo, não se encaixam no conceito de uma raça pura, quimera hitleriana derrubada nas Olimpíadas de Munique com a vitória emblemática do corredor Jesse Owens.


Agraciado com a Palma de Ouro em Cannes, o longa também é um reencontro de Polanski com o seu próprio passado em forma de celuloide. Isso porque seus pais, a exemplo do que houve aos pais de Szpilman, foram aprisionados em campos de concentração, e sua mãe foi morta em Auschwitz. Muito provavelmente, filmar essa história foi como tocar em uma ferida ainda aberta, cuja cicatrização talvez nunca se complete. E, para além de rever e repensar o sofrimento de milhares de seres humanos rechaçados, O pianista é uma forma de mostrar às gerações mais novas um dos episódios de horror inscritos na História, cujo rumo é, em boa parte, definido pelas atitudes dos homens que a vivem. Sob nenhum ponto de vista seria possível legitimar o genocídio causado pelo nazismo, e a história de Szpilman aponta para essa impossibilidade o tempo todo. A cada nova cena de degradação experimentada pelos personagens, cresce a revolta em saber que Hitler e sua corja tiveram tanto tempo de consumar seu ódio infundado.

Muito da força de O pianista, sem dúvida, vem da interpretação assombrosa de Brody. Ele emagreceu 14 quilos para dar vida ao músico e expressa em seu olhar uma vida devassada e esvaziada de sentido, e sua expressão corporal denota um físico cansado e dilacerado, numa composição que encontra uma certa correspondência no trabalho de Joaquin Phoenix em O mestre (The master, 2012), sendo as motivações de cada personagem ligeiramente distintas. Entretanto, o filme não se restringe ao medo e ao desespero: houve uma chance de recomeço para Szpilman, justamente de onde menos se poderia esperar, o que infla O pianista de um otimismo alentador. É interessante perceber que, como ele, nós, o público, ficamos inicialmente desconfiados daquela ajuda, como se não fosse certo acreditar nela. Com isso, o roteiro nos mostra que generalizações são perigosas, já que nos fazem perder de vista as exceções a uma regra nefasta. O pianista chega muito perto das profundezas de um abismo terrível, do qual só a gentileza de uma mão estendida poderia resgatar. Depois de longos planos silenciosos, Polanski faz sentir o peso de cada nota. 

9/10

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