Faroeste caboclo, um belo diálogo entre música e Cinema

A extensa música composta por Renato Russo serviu de matriz para Faroeste caboclo (idem, 2012), estreia do brasiliense René Sampaio na direção de longas-metragens. Os versos que contam a história de João de Santo Cristo e sua saga de perdas e danos se tornaram icônicos para toda uma geração e sempre tiveram potencial cinematográfico. Na verdade, demorou até que um realizador levasse o material às telas e, felizmente, o projeto saiu do papel. Interpretando o protagonista a maior parte do tempo, está Fabrício Boliveira, que acumula alguns trabalhos na televisão e apresenta um biótipo muito adequado a João, cuja infância miserável é vista nos primeiros minutos do filme, uma espécie de prólogo das muitas desventuras que se acumulariam ao longo de sua vida. 

Desde o começo, ele é mostrado como um sujeito destemido e que se sente injustiçado pela vida, como se nunca tivesse recebido dela o que realmente merecia. Já adulto, ele não tem mais pai nem mãe e nada a perder. Entra e sai da cadeia com a mesma facilidade: os anos que passa encarcerado só servem de nutrientes ao seu descontentamento com sua sorte e de combustível para que ele tinja seu destino com cores nebulosas. Ele procura guarida em Pablo (César Troncoso), um parente distante e afortunado graças aos investimentos no tráfico de drogas que se torna seu padrinho. Se antes João apenas flertava com a criminalidade, a partir de então ele a abraça de vez e acredita que está começando a ganhar o que lhe parece de direito. O problema é que sua atividade mexe com gente perigosa que domina o mercado local de narcóticos – a trama se passa na Brasília dos anos 80.

Em uma de suas corridas da Polícia, ele acaba entrando no apartamento de Maria Lúcia (Ísis Valverde), típica garota de classe média que concorda em não denunciá-lo ao ter a certeza de que sua presença ali não traz ameaça. Nasce ali uma estranha afeição que, com novos encontros furtivos, acaba se transformando em amizade e, logo em seguida, amor. A despeito das diferenças de classes sociais e, por conseguinte, de perspectivas, conhecimentos e valores, João e Maria Lúcia formam um casal. O fato mexe profundamente com os brios de Jeremias (Felipe Abib), o arquirrival do protagonista que surge na música. Entre eles, surge uma espiral de orgulho e vingança que dão a tônica do filme, respondendo por sequências de ação bem arquitetadas que demonstram o vigor da direção de Sampaio, de cujo currículo pregresso constam produções televisivas.


Há que se destacar a boa química entre Boliveira e Valverde. O romance inter-racial vivido por seus personagens tem força e desperta torcida, um mérito dos intérpretes, que não transpõem vícios e especificidades da atuação em televisão para o meio cinematográfico. Ele transparece ódio e inconformismo, sendo um homem de poucos amigos e muitos gestos violentos. Ela é uma patricinha cujos olhos se voltam para uma outra ideia de amor e tem suas nuances e conflitos, que a atriz capta bem, afastando os estereótipos. Foram escolhas acertadas do diretor, afinal. Por sua vez, o semidesconhecido Abib é outro a demonstrar talento como um antagonista com o qual é possível simpatizar e que age movido simplesmente por orgulho próprio abalado. Até João aparecer, ele tinha Maria Lúcia por perto como bem entendia e seu ódio pelo namoro dos dois só faz crescer.

Com efeito, houve por parte da crítica e do público a percepção de que Faroeste caboclo dialoga com a gramática consagrada do gênero cinematográfico que está em seu título, sobretudo a variante consolidada por Sergio Leone. Não é sem razão que se observa tal similitude, visto que muitos planos engendrados por Sampaio evocam obras como Três homens em conflito (Il buono, il brutto, il cattivo, 1966), tomo final da trilogia estrelada por Clint Eastwood, sempre encarnando o Pistoleiro sem Nome. Como o protagonista dos três filmes, João é um homem dotado de habilidade para se safar das mais diversas situações, e nunca se dispõe a levar desaforo para casa. Se o Pistoleiro tinha o gatilho mais rápido do Velho Oeste, ele tem a velocidade de um corço para atingir grandes distâncias e escorregar das mãos de seus inimigos – Jeremias é apenas um deles, o manda-chuva de uma Polícia de fachada que reage contra João simplesmente para não perder seu quinhão proveniente da conivência com o tráfico.

Sampaio também estabelece diálogo com a produção tarantinesca, apostando em conversas atravessadas pelo coloquialismo e pelos toques de humor negro. Não faltam referências depreciativas à etnia de João, ditas com a maior naturalidade por Jeremias e sua corja, e vale lembrar que os tempos em que os personagens viviam são muito anteriores aos da correção política que tomou de assalto as relações humanas de uns anos para cá, o que inclui o Cinema. Portanto, é digna de nota a liberdade que o cineasta se permite para contar sua história, apropriando-se da música sem, necessariamente, transformar todos os seus versos em filme. Faroeste caboclo é um recorte da trajetória de reveses de João de Santo Cristo, não uma reprodução audiovisual integral da canção homônima, o que se revela mais um acerto, já que o filme ganha em ritmo e em interesse. Para entusiastas da música, que a têm como parte da trilha sonora de suas vidas, o longa pode funcionar ainda mais. No caso dos demais espectadores, fica uma história bem dirigida, empolgante e corajosa em sua execução final. O título, pensado com suas palavras de modo indivisível, faz todo o sentido nos minutos finais, que não perdem em tensão mesmo para aqueles que já conheciam o desfecho que estava por vir.

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