O abismo prateado: sobre desespero e abandono


Karim Aïnouz tem uma predileção declarada por sujeitos deslocados. A cada novo filme, o realizador cearense volta a enfocar um personagem cujo grau de incômodo com sua própria condição é tamanho que o obriga ao movimento constante. Tem sido assim em O céu de Suely (idem, 2006), no qual uma garota pobre se sente melhor na estrada do que em um ponto geográfico fixo, e em Viajo porque preciso, volto porque te amo (idem, 2009), cujo protagonista, de rosto jamais revelado, se perde e se encontra Brasil adentro e estrada afora. São pessoas para quem o chegar e o partir dizem e importam muito mais do que o permanecer e, com isso, andam pelo mundo atentos a cores, sons, texturas, sabores e aromas, num exercício intenso dos cinco sentidos. Em comum, também trazem consigo as rachaduras de um coração ferido em seu ardor amoroso.

Em O abismo prateado (idem, 2011), verificam-se os mesmos índices, que já podem ser apontados como tipificadores da filmografia de Aïnouz, novamente trabalhados com economia narrativa exemplar e longos instantes de contemplação. Violeta (Alessandra Negrini) experimentou a felicidade – ao menos em seu conceito – em seu casamento com Djalma (Otto Jr.), amando-o e desejando-o como uma mulher que valoriza o homem que está por perto. Entretanto, ele já não está mais na mesma sintonia que ela, mas não tem coragem de expor face a face essa nova sensação. Fica nítido que algo está fora do seu lugar nas primeiras cenas do longa, que trazem o ato sexual dos personagens, ao qual Violeta se entrega com muito mais volúpia e intensidade do que ele, em um prazer quase solitário. Depois, iniciam seus afazeres diários: ele toma seu banho e ela o beija através do vidro, em uma sequência que evoca a Irreversível (Irreversible, 2002), e, em seguida, aguarda-o para o café da manhã, que ele já não compartilha com ela.

Apenas algumas horas depois, Violeta começa a entender o que seus olhos não viam nem seus ouvidos ouviam: seu marido deixou de amá-la e decidiu ir embora antes que eles façam um ao outro infeliz, segundo o próprio. O meio pelo qual Djalma escolhe comunicar sua decisão é um dos piores possíveis: uma mensagem de voz deixada no celular da esposa. Exposta a essa terrível verdade, a protagonista, aos poucos, imerge em um abismo sentimental em que não faltam lágrimas, justificando o título do filme. Então uma dentista atenciosa e talentosa, ela se torna incapaz de se concentrar no trabalho, perdendo o chão e a vivacidade em seu olhar. Tudo o que lhe resta, naquele momento, é a constatação do abandono, que a faz experimentar diferentes fases de reação, da usual negação à conduta resignada, passando pela tristeza profunda.



O drama de Violeta é, ao mesmo tempo, íntimo e universal. Em sua busca pela superação de uma dor tão abstrata, ela caminha sem rumo, entra em um táxi, volta para casa e sai novamente. O importante é não deixar de se movimentar, talvez porque, enquanto se move, ela pensa mais no movimento em si do que no fator que o desencadeou. Toda a ação transcorre em um único dia, e esse recorte temporal, naturalmente, permite vislumbrar apenas parte da vida dessa mulher combalida. Aïnouz é um cineasta de omissões, que deixa a cargo do espectador uma série de inferências, entre elas, identificar o que levou Djalma a mudar radicalmente seus sentimentos pela esposa. O personagem aparece somente no início do filme, e permanece como um grande mistério a ser desvendado até o fim dos enxutos 83 minutos de narrativa. Aquele homem é um estranho para o público, e também se torna um estranho para Violeta.

Parte da inspiração para O abismo prateado vem da canção Olhos nos olhos, de Chico Buarque, da qual seria homônimo. Porém, vendo que se afastava da letra da música, Aïnouz decidiu rebatizar seu filme, o que, de certa maneira, contribuiu para que ele ganhasse um pouco mais de identidade própria. Assim, é um engano pensar que o filme possa vir a ser uma versão audiovisual da composição musical, cujos versos mais famosos declaram a tentativa sôfrega de uma mulher abandonada de parecer recuperada aos olhos do ex-amante: Quando você me quiser rever / Já vai me encontrar refeita, pode crer / Olhos nos olhos, / Quero ver o que você faz / Ao sentir que sem você eu passo bem demais. Não há problema algum no fato de o longa não seguir à risca sua principal matriz. Nas mãos de um diretor talentoso como Aïnouz, a história tem força o bastante para caminhar sozinha e se valer apenas de alguns trechos.

Há que se lamentar o incrível atraso com o que a produção foi lançada nos cinemas brasileiros. Pronto desde 2011, o filme encontrou imensas dificuldades no circuito comercial, sempre tão intumescido de arrasa-quarteirões, e iniciou sua carreira no 64º Festival de Cannes, incluído na Quinzena dos Realizadores, que funciona como uma vitrine para novos cineastas, o que seria o caso de Aïnouz em solo francês. No mesmo ano, Trabalhar cansa (idem, 2011) também foi selecionado para o festival, sendo incluído na mostra paralela Um Certo Olhar e dividindo com esse singelo drama a função de representar o Brasil em plena Croisette. A cena mais emblemática da busca interior de Violeta é a que mostra sua dança em uma boate. Iluminada pelas luzes estroboscópicas do lugar, ela vive sua catarse, expurgando a tristeza e buscando um renovo, que dali para frente, torna sua condição menos penosa. O abismo prateado merece ser saudado como uma bela meditação sobre o quanto o amor pode estabilizar e orientar quem o sente, bem como sua ausência produz o efeito contrário.

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