QUINTETO DE OURO - TRANSFORMAÇÕES FÍSICAS

Quando se trata de encarnar um personagem, certas adaptações se fazem necessárias para o ator. No processo de composição podem entrar mudanças físicas também, conforme o tamanho da distância entre o um e outro: engordar, emagrecer, perder os cabelos, mudar a fisionomia, emular um sotaque alheio... Daí existem chances de surgir interpretações memoráveis, às vezes até mesmo dentro de filmes que não detêm mais nenhuma outra qualidade. Pensando nos vários casos de atores que desaparecem em um papel, elegi o tema do Quinteto de Ouro, que volta esse mês depois de um pequeno recesso, de certa forma involuntário. O tempo andou voando demais, e quando dei por mim tinha passado outubro e novembro em brancas nuvens nesse departamento. 

É fato conhecido que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, vulgarmente conhecida como Oscar, adora essas transformações. Praticamente todos os anos surge algum indicado nas categorias de atuação com esse "requisito", e muitos são premiados. Um exemplo recente é a vitória de Eddie Redmayne por A teoria de tudo (The theory of everything, 2014), em que viveu Stephen Hawking, e seu prêmio foi bastante questionável, já que a interpretação se baseou demais na fisicalidade, e os outros candidatos, sem esse recurso, eram mais merecedores de ganhar. 

Meus escolhidos vão por outro caminho. Procurei selecionar atores e atrizes que conseguiram não apenas entregar ótimos desempenhos, mas também estiveram inseridos em histórias com bons roteiros e direções, o que significam filmes a serem lembrados por algo mais, e não simplesmente como "filmes de atores", e acredito que a maioria se encaixa nessa descrição. Na minha lista, o aspecto físico é complementar, não uma muleta. Certos atores poderiam figurar até mais de uma vez nessa lista, mas com vaga para apenas cinco integrantes eu não poderia me dar ao luxo de repetir nomes. Ademais, não me preocupei em estabelecer ordem de preferência, detalhe que sempre tenho que reforçar porque vai na contramão do que a maioria espera e pratica.

1. Robert De Niro em Touro indomável (Raging bull, 1980)


Em sua terceira parceria com Martin Scorsese, novamente De Niro precisou exercitar a fúria, a exemplo do que havia feito quatro anos antes em Taxi driver (idem, 1976). Na pele do boxeador Jake LaMotta, ele precisou lutar como uma fera, e a passagem do tempo sobre o personagem trouxe efeitos visíveis no corpo, em parte devido à natureza da atividade física (me recuso a chamar boxe de esporte), em parte devido à irresponsabilidade de Jake com a própria saúde. Era uma figura difícil, que apanhava e batia em igual proporção nos ringues e na vida, de raros sorrisos e fartos rompantes, como quem está sempre esperando a hora de desferir um golpe antes que seja pego de surpresa. O interessante é que De Niro precisou convencer Scorsese a ficar com o papel, e para isso se dedicou a treinos por 1 ano com ninguém menos que LaMotta, e ainda engordou 25 quilos. O resultado foi uma interpretação que impressiona pelo físico, mas também pela maneira intensa como o ator se doou ao personagem. O Oscar de melhor filme não veio - uma queixa de muitos - mas De Niro foi contemplado com uma estatueta por seu desempenho.

2. Daniel Day-Lewis em Meu pé esquerdo (My left foot, 1989)


O filme vale mesmo pela presença impressionante de Day-Lewis. Quem conhece um pouco sobre o ator conhece seu método de interpretação, que significa levar para a vida cotidiana o personagem que tem nas mãos. Há poucas semanas, ele anunciou sua aposentadoria (precoce) do cinema e agradeceu à esposa pela paciência em todos esses anos com tal envolvimento com seus papéis. Agora imagina levar para casa o papel de um homem acometido de paralisia cerebral na infância cujos movimentos se resumem ao pé esquerdo? Sabe-se lá como ele conviveu com família (e amigos talvez?) no período das filmagens, mas o fato é que seu desempenho extraordinário é referência para qualquer ator disposto a se entregar ao ofício, ainda que também se possa dizer que alguém como Day-Lewis é raríssimo. Por conta da decisão de permanecer na cadeira de rodas mesmo nos intervalos das cenas, ele acabou quebrando duas costelas. Nos demais aspectos, Meu pé esquerdo é um filme bem quadrado e esquecível, que se beneficia de um ator desse naipe e alcançou, por isso, notoriedade. É mais uma figura real da lista que foi parar nas telas.

3. Nicole Kidman em As horas (The hours, 2002)


Parece que transformação física, personalidade real e Oscar andam sempre de mãos dadas. A terceira integrante do quinteto ratifica essa observação. Conhecida por sua beleza e seus fios ruivos no início da carreira, Nicole Kidman se reinventou sob a pele de Viriginia Woolf, escritora atormentada por episódios de insanidade e intenções suicidas acompanhada no processo de escrita de Sra. Dalloway. O detalhe mais notável de sua transformação foi uma prótese no nariz, o suficiente para enfeiá-la e fazê-la irreconhecível. Diferentemente de Meu pé esquerdo, As horas tem mais do que uma ótima atuação: tem três. E ainda apresenta qualidades no roteiro, na montagem, na trilha sonora... Além de ficar feia, Kidman também precisou aparentar mais idade, e sua magreza (dita natural e muitas vezes questionada) também veio a calhar para representar o tipo físico esquálido da verdadeira Woolf. À época, Kidman estava em sua melhor fase até hoje, emendando personagens interessantes e mudando consideravelmente de visual a cada novo trabalho. Aliás, ela é uma das atrizes mais camaleônicas do cinema, já tendo exibido muitas cores e cortes de cabelo.

4. Christian Bale em O operário (The machinist, 2004)


Uma lista sobre mudanças físicas em nome de um papel não pode deixar de conter ao menos uma vaga para Christian Bale, rei das engordas e emagrecimentos. Poderia ter escolhido outro longa no qual ele se metamorfoseou, mas nem todos são tão bons para além do sua presença - aquele critério que já expus anteriormente. A vaga então foi para O operário, rodado pouco antes de sua primeira experiência como Batman. O ator simplesmente emagreceu 30 kg, ostentando um visual cadavérico para encarnar Trevor, homem cada vez mais surtado, incapaz de se alimentar e passando os dias sem a mínima perspectiva. Ainda assim, se aproxima e se envolve com uma mulher também complicada, mas de maneira conflituosa, que ainda eleva suas paranoias. É bastante perturbador acompanhá-lo como um esqueleto ambulante, sempre dando a impressão de que vai se quebrar a qualquer momento. E pensar que pouco depois ele precisou recuperar os quilos e desenvolver músculos para viver um certo Batman...

5. Marion Cotillard em Piaf - Um hino ao amor (La môme, 2007)


Já fazia algum tempo que Marion Cotillard atuava, inclusive com passagens por Hollywood, mas nossos olhos começaram a enxergá-la de fato quando ela desapareceu sob o visual de Edith Piaf. O comentário soa paradoxal, mas descreve exatamente o sentimento de perplexidade de muitos espectadores que conferiram o longa antes de vê-la como outras mulheres. Seu rosto jovem, luminoso e exuberante foi apagado pela tristeza que impregnava a trajetória da verdadeira Piaf, cujas tragédias lhe trouxeram marcas físicas impossíveis de esconder. Viveu pouco, e nos últimos anos sua real idade era inacreditável: seus 48 pareciam 80 e poucos, tamanha a devastação no corpo. Mas a voz... esta seguia ali, inabalável em sua intensidade, mas com as rachaduras da vida integradas. Não foi fácil para a atriz se desvencilhar da personagem, algo que ela declarou em entrevista. Os oito meses que sucederam as filmagens foram de esforço para "expulsar" Piaf de sua vida, e serviram de aprendizado para que ela estabelecesse limites de envolvimento em seus papéis seguintes.

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