Divertida mente, uma viagem emocional e emocionante

Emoção é o que não falta a Divertida mente (Inside out, 2015), mais uma investida da Pixar que merece todas as atenções e créditos. Sem a menor contra-indicação, o enredo da vez congrega cinco sentimentos humanos básicos e lhes dá cor, voz, forma e atitude para ilustrar a confusão que se instaura na cabeça de Riley, uma garota de 11 anos que, subitamente, é avisada pelos pais de que eles terão de se mudar para São Francisco. Assim, Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Repulsa entram em polvorosa, cada qual ditando a tônica emocional de Riley a seu tempo. É muita novidade chegando de uma vez só para alguém que ainda está se despedindo da infância, afinal. 

As escolhas das caracterizações de cada sentimento não parecem aleatórias e aludem facilmente ao que cada um representa, com exceção da Tristeza, que carrega consigo o azul, cor que mais especificamente os falantes de inglês associam a tal sentimento. Eles chegaram a nomear um estilo musical lamentoso de blues. No caso do português, o azul transmite a ideia diametralmente oposta, além de ser ligado a um estado pacífico. As demais emoções apresentam tons que se mostram icônicos para além da cultura estadunidense: a Raiva é de um vermelho vivo que se encaixa na expressão vermelho de raiva, a Repulsa é verde como a representação dos maus cheiros em desenhos animados, o Medo é lilás, uma cor fria que pode remeter ao extremo desconforto. A Alegria, por sua vez, é a única que tem várias cores, e não poderia haver representação melhor para um sentimento que é sempre o lado positivo de tudo.

Entretanto, esses são os detalhes mais óbvios da arquitetura dramática cuidadosamente pensada em Divertida mente, cujo título nacional carrega um trocadilho um tanto reducionista, já que, lá pelas tantas, Riley perde justamente a capacidade de achar qualquer coisa divertida. O roteiro assinado por Peter Docter e Michael Arndt semeia reflexões ao longo de pouco mais de uma hora e meia, oferecendo um painel de várias memórias de Riley, reunindo momentos de sua vida de bebê, a cumplicidade e o carinho com os pais e os amigos. Todos esses episódios geraram sentimentos predominantes, e eles vão para a memória de longo prazo dentro de globos que têm a cor do sentimento mais forte em cada um. São esses e outros pequenos e grandes achados que tornam o filme um dos mais lapidares do universo da Pixar, que vem se especializando em voos cada vez mais altos e em textos e temas que não se restringem às crianças.


O diálogo com a Psicanálise também é notável, mas o longa não se mostra como uma tese ou um estudo mais profundo sobre o campo das emoções, o que implicaria em dois aspectos incômodos e desnecessários: a pretensão e o didatismo. Há certas passagens um pouco mais esclarecedoras no texto, sobretudo nas falas da Alegria, mas só o bastante para não perder de vista que se trata de uma produção concebida inicial e preferencialmente para a audiência infantil. É curioso reparar as saídas encontradas pelo roteiro para dar conta de expressar visualmente elementos tão intangíveis como os sentimentos, e há uma sequência especialmente feliz nesse tocante: a travessia da sala da abstração. A essa altura, a Alegria e a Tristeza estão tentando retornar à sala de comando e já conheceram Bing Bong, amigo imaginário de Riley esquecido após a primeira infância. Incapaz de ler e interpretar a palavra PERIGO, o simpático personagem convence as outras a passar por ali.

Uma vez dentro da tal sala, os três experimentam uma série de transformações que os vão deixando cada vez mais abstratos e, exatamente por isso, mais difíceis de identificar e expressar em palavras. De personagens tridimensionais, eles passam a figuras achatadas e, posteriormente, viram apenas riscos coloridos. Traduzida para o universo real, a cena pode ser perfeitamente lida como uma alusão aos dias que todos nós temos em que os sentimentos se embaralham e fica praticamente impossível se referir a eles com palavras - que também são uma forma de codificação, vale lembrar. É ou não é uma sacada genial e inventiva? Portanto, os grandes protagonistas de Divertida mente são os sentimentos, e Riley acaba como uma espécie de suporte para que eles mostrem suas facetas e ganhem o espectador. Até mesmo a Tristeza é cheia de carisma, com sua aparência nerd e o jeito prestes a desabar em cada cena.

A cabeça dos pais também chega a ser visitada na cena em que eles indagam Riley sobre o primeiro dia na nova escola. A mãe, exercendo seu papel de modo típico, demonstra interesse por essa etapa importante na vida de menina, enquanto o pai cultiva um olhar perdido e despreocupado. Após um discreto sinal da esposa, ele é despertado de uma espécie de transe, e suas respectivas salas de comando tentam estabelecer algum tipo de comunicação não-verbal. É quando emerge a clássica demarcação de diferença entre homens e mulheres: estas, mais atentas aos detalhes e mais emotivas, aqueles, mais práticos e de poucas palavras. Não deixa de ser uma perspectiva um tanto estereotipada em certa instância, mas ainda assim é representativa de muitos casais, que se queixam justamente dessas visões de mundo destoantes no relacionamento. 

Divertida mente é, no fim das contas, uma viagem emocional e emocionante. Esse jogo de palavras bastante simples é também eficaz para se referir ao longa dirigido pela dupla Peter Docter (que usa seu apelido Pete nos créditos) e Ronaldo Del Carmen. O primeiro é responsável pelo delicioso Up - Altas aventuras (Up, 2009), e quem já conferiu e gostou desse vai saber muito bem que é um item e tanto no currículo. Docter sabe dosar aventura e ternura, palavras cuja rima nem sempre é aproveitada em termos de narrativa. Mais uma vez, o estúdio pisa em um terreno universal, e oferece a deixa para uma conclusão interessante, a ser comprovada mediante observação do cotidiano: o quinteto de sentimentos presente numa criança evolui para outros mais complexos, formando uma rede que, em grande parte, traduz o que é ser humano.

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