Um novo despertar e a vida em eterno processo de recomeço



Depois de um hiato de oito anos, Mel Gibson voltou a dar expediente como ator em dois filmes que foram lançados em um intervalo de tempo relativamente curto: O fim da escuridão (The edge of darkness, 2010) e Um novo despertar (The beaver, 2011). Este segundo é seu reencontro com o drama e com a dignidade de sua carreira, malgrado os comentários negativos da grande maioria da crítica, que apontou inúmeros defeitos no filme e praticamente condenou sua diretora à guilhotina. Assinado por Jodie Foster, que não ia para atrás das câmeras desde Feriados em família (Home for the holidays, 1995), assim como também não vem acumulando muitas atuações nos últimos anos. A união da dupla está a favor da contação de uma boa história, que não escapa de alguns índices de esquematismo, os quais, entretanto, não a ferem de morte, conforme foi tão propalado. Walter Black (Gibson) é um homem consumido pela tristeza, uma espécie de banzo que o faz rejeitar qualquer estímulo para recuperar a vontade de viver e produzir. Já tentou de tudo que estava ao seu alcance, sem que obtivesse êxito. Sua esposa Meredith (Foster) também já desistiu dele, de certa forma. Tanto que se tornou sua ex-esposa.

A tábua de salvação de Walter acaba sendo um fantoche de castor que ele encontra quase por acaso em uma caçamba de lixo, ao se desfazer de alguns objetos pessoais. É interessante perceber que ele, que lida com brinquedos diariamente, já que é presidente de uma indústria que produz exatamente isso. Eis uma sutil ironia do roteiro escrito por Kyle Killen, que ainda espalha alguns outros vestígios de sarcasmo ao longo da narrativa, que, embora tendida para o lado dramático, faz algumas concessões ao humor negro. Depois que encontra o tal fantoche, Walter o leva para casa e começa a desenvolver com ele uma estranha relação, fazendo daquele animalzinho de pelúcia uma espécie de alter ego seu. O mote de Um novo despertar é esse e, através da figura complexa de seu protagonista, o filme ensaia reflexões potentes sobre a necessidade que tantas pessoas têm de se fiarem em elementos ou outras pessoas que lhes sirvam de bengala.

Jodie Foster voltou à cadeira de diretora demonstrando uma forte inclinação ao debate de um tema de contornos delicados: a depressão. Movida por um interesse em tentar entender os meandros do processo de tristeza que acomete tantas pessoas sem aviso prévio, ela faz de Mel Gibson o centro de uma história que pode ser a de muitas famílias, e que sofre a inserção de um elemento inusitado por conta do surgimento do castor de pelúcia, que passa a ser a voz de Walter em todos os momentos. O uso do “personagem” é muito mais metafórico, funcionando como estratégia de chegada a uma discussão sobre o distanciamento progressivo entre as pessoas. A seu modo, Foster também trata acerca da incomunicabilidade, um mal que atravessa a civilização moderna há muito tempo, que envenena as relações humanas, podendo ser irreversível, e cujo antídoto ainda parece longe de ser encontrado. A desestabilidade no comportamento de Walter também afeta diretamente seu relacionamento com os filhos, especialmente Porter (Anton Yelchin), que faz questão de manter um controle sobre características de sua personalidade que podem ser herança paterna. O mais novo também sofre, à sua maneira, e se mostra extremamente resignado com o bullying a que vem sendo exposto no colégio em que estuda. Como se vê, o estado de inércia de Walter se alastrou para todos os seus entes queridos.



Existem qualidades em Um novo despertar. O título, entretanto, talvez não seja uma delas. O original é bem mais direto e explícito – O castor – mas a versão em português também guarda um teor de otimismo que impregna a narrativa da obra. No subtexto, nota-se uma crença na possibilidade de virada do personagem, mesmo que ela venha por meios não-ortodoxos. E, em certa altura, ele também acaba se tornando refém de sua própria criação, por assim dizer, quando começa a receber ordens que não quer seguir. É o feitiço (na acepção original, de coisa feita) se virando contra o feiticeiro. O longa também é uma chance de renascimento de Mel Gibson como ator, uma comprovação de seu talento quando ele decide mostrar o que sabe fazer bem. Os anos voltados para o exercício da direção não diluíram em nada sua capacidade como intérprete, a qual é bastante exigida através de seu papel, em que há uma linha tênue entre Walter e o castor. Aliás, o fantoche, cuja voz vez do empresário, tem um sotaque curiosamente estranho, que obriga Gibson a alternar sua fala normal com a de seu alter ego. Assim como ele, os demais atores estão em interpretações seguras e competentes. Foster tomou para si o papel da esposa e da mãe, e dá conta da função de elo entre o ex-marido e seus filhos. Yelchin, o rapaz de O exterminador do futuro – A salvação (Terminator: salvation, 2010), também está ótimo como o filho que não suporta a letargia de seu pai. Outra que aparece com contenção e descrição e abre uma subtrama é Jennifer Lawrence, revelada para o mundo em Inverno da alma (Winter’s boné, 2010), que, aqui, dá vida a uma moça problemática que entra em uma simbiose com Porter.

Em alguns momentos, Um novo despertar recorrer a um certo didatismo, o que não é prejudicial de todo. O drama de Walter é explicitado de diferentes maneiras, e é plenamente possível para o espectador entender o que se passa no âmago daquele homem e no seio daquela família. Esse expediente pode ser visto sob vieses distintos, e foi apontado por parte da crítica como um defeito do filme. No fundo, não chega a constituir uma falha, mas como uma escolha legítima do roteiro, com poucos furos e uma dedicação quase exclusiva ao acompanhamento do processo de recomeço de Walter. Outros atores chegaram a ser cogitados para o papel, como Jim Carrey – que já provou não ser apenas careteiro – e Steve Carrel – outro verdadeiramente dotado de grande talento - , mas a amizade de Gibson e Foster parece ter falado mais alto para que ele fosse escolhido. Aliás, os dois já haviam atuado juntos em Maverick (idem, 1994), e repetem aqui a dobradinha com muito entrosamento e veracidade. A agonia de Meredith diante da quase loucura do ex-marido é crível e, de certa maneira, sua perplexidade também é a perplexidade do espectador, que se vê desafiado a acreditar em uma saída para aquele túnel que parece sem luz.

A instabilidade de Walter também acaba sendo um paralelo óbvio com a instabilidade de Gibson fora das telas, e ajuda a reafirmar a força de um intérprete com muitas cartas na manga. Nas bilheterias ianques, contudo, o filme se revelou um grande fracasso, depois de ter tido sua estreia adiada várias vezes. Nos primeiros dias de exibição nas telas, a produção arrecadou pouco mais de 100 mil dólares, uma quantia irrisória mesmo diante do orçamento de 21 milhões que foi investido no filme. É uma pena que a recepção das plateias tenha sido tão fria, já que o filme é extremamente honesto em suas intenções, e não soa pretensioso nem acima de outros, seja em sua forma, seja em seu conteúdo. Se aqui muitos repeliram o filme como um todo, no exterior houve elogios, especialmente ao desempenho de Gibson. Peter Travers, célebre crítico da revista The Rolling Stones, afirmou o seguinte: “Se você não consegue superar seus sentimentos pelo problemático Mel Gibson, você tem que assistir a uma performance do mais alto calibre”. As palavras de Travers são sábias, e corroboram a certeza de que, mais do que a demonstração da possibilidade de renascimento de um homem corroído pela própria afasia, Um novo despertar também é o renascimento de um grande intérprete.

Comentários

  1. A critíca detonou tanto o filme, que fiquei sem vontade de conferir.

    http://thecrimnson.wordpress.com/

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