A angústia da passagem do tempo em O curioso caso de Benjamin Button


Vez por outra, o cinema traz à tona certos assuntos para serem postos em discussão. Entres os mais recorrentes talvez estejam os relacionamentos amorosos e suas dores e delícias, assim como a sensação de não-pertencimento a uma determinada realidade. Além dessa temática, a passagem do tempo também é tratada costumeiramente por diretores de nacionalidades, estilos e épocas diferentes. Em O curioso caso de Benjamin Button (The curious case of Benjamin Button, 2008), o diretor David Fincher aborda essas três temáticas de uma única vez, ao trazer para o cinema uma adaptação do conto homônimo de Francis Scott Fitzgerald. Na figura do personagem-título, estão sintetizadas as agruras e venturas de alguém que vai o tempo todo na contramão dos demais. Vivido por um inspirado Brad Pitt, Benjamin Button guarda consigo a particularidade de ter nascido idoso, com a aparência de um homem octagenário. O passar dos anos foi demonstrando que ele continuava sendo uma pessoa atípica, pelo que ocorreu em seu desenvolvimento um inesperado processo de rejuvenescimento. Assim foi sendo à medida em que o personagem chegava perto de ser aquilo que deveria ser considerado adulto.
Calcado nessa premissa interessante, Fincher se apropria da pergunta que norteou Fitzgerald na escrita de seu conto: seria a solução dos problemas do homem se ele nascesse velho e fosse se tornando mais jovem com o avançar dos anos? Através da figura de Button, o realizador busca examinar a validade dessa hipótese, e chega a constatações não muito animadoras. Ao longo de pouco mais de duas horas, o espectador se vê diante da trajetória pouco comum do homem que se distancia cada vez daqueles de quem quer se aproximar, especialmente sua grande paixão, encarnada na figura talentosa de Cate Blanchett, que repete a parceria com Pitt apenas dois anos depois de Babel (idem, 2006). Eles são a porção de discussão sobre a falibilidade do amor, levada ao extremo, que está na proposta trazida pelo diretor. Com Daisy, Benjamin experimentará as sensações desestruturadoras que o amor proporciona, mas também as impossibilidades decorrentes de sua condição física anômala. Ela assegura a ele que só pode haver um relacionamento consistente entre os dois quando suas aparências e idades cronológicas estiverem minimamente sincronizadas, e isso gera um constante movimento de aproximação e afastamento entre eles. Vemos Benjamin observar sua amada de longe, à espreita, resignado por não poder alcançá-la plenamente, assim como percebemos a inadequação daquele homem ao contexto em que se encontra inserido, assim como ele se encontrará deslocado em outros ambientes por que passa.
O curioso caso de Benjamin Button é um filme que traz para a discussão questões fundamentais da vida e do ser humano. Pelo viés do insólito, somos levados a refletir sobre um homem que tem a oportunidade de se relacionar com as pessoas de modo diferente, e essa possibilidade gera ganhos e perdas. Talvez mais perdas do que ganhos, afinal há sempre uma certa desvantagem dele com relação aos outros. Rejuvenescer progressivamente parece uma boa saída a princípio, mas do que adiante ficar cada vez mais novo se as pessoas ao seu redor não vivenciam o mesmo processo? O roteiro, escrito por Eric Roth, é atravessado por essa e outras questões, e acerta ao colocar componentes históricos importantes na narrativa, como o alistamento do protagonista na Segunda Guerra Mundial, e sua opção, algo forçada, pela vida de andarilho. O roteirista também é responsável pela escrita do texto de Forrest Gump – O contador de histórias (Forrest Gump, 1994), e nota-se que o personagem do filme de Fincher guarda uma série de semelhanças com o protagonista vivido por Tom Hanks no filme predecessor, que o espectador dos dois longas poderá detectar. Dessa vez sob a égide fincheriana, o escritor volta a debater um assunto que lhe parece bastante caro e importante. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas também se interessou pelo tema, concedendo nada menos do que 13 indicações ao Oscar para o filme, que se destacou, no final das contas, pelos aspectos técnicos, como a maquiagem, os efeitos visuais e a direção de arte



Com relação ao conto no qual o filme se baseou, vale comentar que a inspiração específica de Fitzgerald veio de uma frase dita por Mark Twain: “A vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer aos 80 anos e gradualmente chegar aos 18.” Em busca da realização, ao menos literária, dessa premissa, o autor criou um texto rico em possibilidades, mas também deflagrador de certa agonia, que Fincher levou à tela, com o auxílio de Pitt. Essa é a segunda colaboração entre eles depois de Clube da luta (Fight club, 1999), e nota-se que o passar dos anos trouxe um efeito benéfico à carreira do ator, que oferece uma interpretação fantástica por meio de seus gestos e olhares contidos. O trabalho de maquiagem do ator, que aparece inclusive na fase idosa/pueril do personagem, graças a efeitos de computação gráfica, é notável, e ele se desdobra em aparições praticamente ininterruptas na história. E pensar que nem seria ele a dar vida ao protagonista... Em 1998, cogitou-se dar a direção do filme para Ron Howard, e o papel principal para John Travolta, mas o projeto acabou nunca saindo do papel, até que Fincher assumisse o comando do longa e reeditasse sua parceria de anos antes com Pitt, o que foi, no fim das contas, um grande acerto. Benjamin Button atesta a maturidade do ator, e faz vê-lo como alguém que vai muito além de sua já comentada beleza para apresentar competência em sua performance. Sua química com Cate Blanchett também auxilia na manifestação da empatia pelo casal, fadado à tragédia da condição especial do protagonista. O filme também oferece um time de coadjuvantes de muito talento, como Tilda Swinton, uma atriz ainda desconhecida do grande público que é dotada de grande capacidade camaleônica, e aqui dá vida a uma das muitas figuras curiosas e cativantes que atravessam a caminhada de Benjamin e contribuem, de alguma maneira, para a sua formação. O personagem é testemunha da história, da transformação do mundo e de seu próprio corpo físico, bem como de sua estrutura psicológica. A mutabilidade humana está assinalada mais uma vez, por meio do longo tempo de vida do personagem.
Outra atriz que também exala competência é Taraji P. Henson, que chegou a ser indicada na categoria de melhor atriz coadjuvante, perdendo para a favorita Penélope Cruz e sua personagem em Vicky Cristina Barcelona (idem, 2008). Na pele da mãe adotiva do protagonista, ela é pura alma e coração, transpirando carinho pelo filho que ama sem nunca entender totalmente. Julia Ormond é outra que, confinada ao espaço de um ambiente, simboliza a tentativa de compreensão do que aconteceu à sua mãe anos antes. A atriz anda cada vez mais rara no cinema, e é um prazer acompanhá-la nesse trabalho ocasional, com uma participação pequena, mas eficiente. Afora esses atores em interpretações elogiáveis, há a metáfora da passagem do tempo em sentido contrário, que sintetiza a eterna busca humana pela intensa longevidade, e seu desejo de burlar uma grandeza inventada pelas convenções, com a qual já se nasce e se aprende a conviver dia a dia. O tempo, em sua implacabilidade, é o grande personagem do filme, para além que qualquer indivíduo, comum ou não tão comum, que assuma aparentemente o posto de importante.

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