O vencedor e a vivência de um dia após o outro


A dificuldade de lidar com a necessidade do recomeço é uma temática sobre a qual versa O vencedor (The fighter, 2010), filme de David O. Russell que ficou entre os dez indicados da edição 2011 do Oscar. Na confluência de atores de grande talento está o grande mérito do longa-metragem, que traz como personagem principal Mickey Ward, encarnado com propriedade por Mark Wahlberg. Ele é um pugilista que se vê obrigado a lidar com os reveses de sua vida, muitos deles ocasionados pela influência de seu irmão Dicky Eklund (Christian Bale), a quem sua família sempre busca dar uma nova chance. Entretanto, Dicky é problemático, e se envolve com drogas, o que só tumultua seu relacionamento com os membros do clã. E, assim, em poucos minutos, o filme demonstra a que veio: entremear os conflitos que ocorrem no seio familiar com a trajetória de treinos e lutas dos dois irmãos.
Como tem mais experiência no assunto, Dicky decide treinar Mickey, que não tem grandes chances de ascender na carreira inicialmente, algo que só vai mudar quando ele conhecer Charlene Fleming (Amy Adams), que colabora para que ele reúna forças para bater de frente com a família. Sim, Mickey é o caçula preterido pelos pais que tem de provar várias vezes que é capaz de grandes feitos. Qualquer associação feita pelo espectador com personagens de filmes pregressos só fará comprovar a presença de elementos reconhecíveis na trama de O vencedor, que não oferece grandes inovações e se fundamenta no desempenho cênico admirável dos nomes já citados, e de outros que ainda serão comentados. O filme assinala o retorno de David O. Russel depois de um hiato de 6 anos, já que seu último trabalho havia sido Huckabees – A vida é uma comédia (I heart Huckabees, 2004), que praticamente ninguém viu. Seu novo trabalho se aproxima muito mais de Três reis (Three kings, 1999), em que trabalhou pela primeira vez com Wahlberg, por conta de sua estética mais realista e de sua aura mais rústica.
A direção de atores é, sem dúvida, o que chama mais a atenção no longa-metragem. É prazeroso acompanhar a dobradinha entre Wahlberg e Bale, que recebeu o Oscar de melhor ator coadjuvante por seu papel. Seu desempenho impressiona, e comprova seu talento como intérprete mais uma vez. Bale tem a capacidade de transitar entre filmes de apelo mais comercial e outros com um teor mais artístico e/ou artesanal, como O operário (The machinist, 2004), em que encarnou um homem atormentado e para o qual teve de perder 30 quilos. Seu Dicky é uma clara demonstração do quanto ele pode ser camaleônico quando se trata de entrar em um personagem, e fica ainda mais notório seu trabalho de composição quando, ao final do filme, surge na tela o verdadeiro Dicky. Wahlberg, por sua vez, aposta em uma atuação propositalmente comedida, por vezes quase apagada, levando a concluir que o filme é muito mais de Bale que dele. É um típico caso de alguém que não consegue ser protagonista de sua própria vida, sendo ofuscado por pessoas próximas que lhe tomam a frente.

Além deles, há também Melissa Leo, outra grande atriz que dá o melhor de si e apresenta uma performance totalmente diferente da que rendeu sua primeira indicação à estatueta dourada. Uma comparação rápida entre sua personagem em Rio congelado (Frozen river, 2008) e neste filme permite perceber o quanto ela é capaz de se reinventar. Aqui, ela dá vida a uma espécie de perua que mima o filho mais velho e se mostra descrente da capacidade do caçula, o que a leva a embates, velados ou não, com Charlene, a namorada que Mickey arranja em uma de suas noitadas. A atriz merece ser descoberta e vista em seus outros trabalhos, que não são poucos. No dia de sua vitória no Oscar, foi uma delícia assistir à sua reação extática pela coroação de seu trabalho. De fato, a cada nova aparição sua na tela, é evidente sua capacidade de fazer misérias como intérprete.
O vencedor expõe pela vertente do contrastivo o abismo e a ponte que existe entre os irmãos Ward, e de como pode ser terrível deixar a vida nas mãos de outrem. Disposto a ajudar Mickey, Dicky muitas vezes mete os pés pelas mãos, e causa problemas infinitos à família. O filme também traz a realidade de uma comunidade de descendentes de imigrantes irlandeses, a exemplo de títulos recentes como Terra de sonhos (In America, 2002), de Jim Sheridan, e Atração perigosa (The town, 2010), de Ben Affleck. Cada qual, entretanto, apresenta o seu viés. O filme de Russell não tem a preocupação de examinar politicamente o estado de coisas desses descendentes, mas em oferecer um retrato realista, pincelado de matizes dramáticos, de um homem comum que foi galgando degraus até alcançar um patamar desejado. E seu lançamento se deu apenas dois anos depois de O lutador (The wrestler, 2008), filme que também abordava o universo dos ringues, embora fossem os da luta livre. A temática mais uma vez chamou a atenção da Academia, que concedeu 7 indicações ao filme, mas somente no quesito atores ele saiu de fato vitorioso. Outro ponto positivo de O vencedor, porém, é sua direção firme e veloz de Russell, que imprime vitalidade as sequências e afasta o marasmo da condução do enredo, cujo roteiro também esta sob sua responsabilidade. São muitos os momentos de ação e as situações de virada na narrativa, com certos escorregões no estereótipo que, com um pouco de indulgência, são desconsideradas.
Durante o transcorrer de sua trama, o filme permite que se enxergue o caminho trilhado por Mickey por mais de uma perspectiva, fato que se dá simplesmente pela maneira como as atitudes do protagonista vão sendo mostradas uma a uma. A edição funde imagens documentais com as filmagens dos atores em seus respectivos personagens, e confere um tom ainda mais realista à obra. Os atores, como já se disse, são o ponto forte de um filme que examina os erros e acertos de alguém que tateia o próprio caminho. A história é ambientada no presente, mas demonstra sua atemporalidade ao se afirmar como um retrato de um ser humano e sua necessidade de autossuperação. Há uma certa dubiedade com relação do gênero do filme, que se inicia em tom mais cômico, o qual vai dando lugar a um componente melodramático que passa a assinalar a narrativa a partir daí. E nesse hibridismo, Russell potencializa sua habilidade em não se limitar ao traço de arquétipos.

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